Uma mulher aos comandos da casa da grande máquina que “apanhou” o bosão de Higgs
Quando, em breve, o LHC – o maior acelerador de protões do mundo – acordar da sua “sesta” invernal, terá pela primeira vez uma mulher cientista a dirigir o CERN, o laboratório europeu que o alberga. Cheia de energia, ela já disse que tenciona aproveitar a fundo a energia do LHC.
Quem assistiu ao anúncio global em directo, a 4 de Julho de 2012 a partir do CERN (Laboratório Europeu de Física das Partículas), de que o bosão de Higgs tinha sido detectado lembra-se sem dúvida dela. Foi nesse dia que Fabiola Gianotti, física do CERN, ficou conhecida no mundo inteiro ao explicar que a equipa que liderava – a da chamada experiência ATLAS – tinha finalmente encontrado, graças ao LHC (o maior colisionador de protões do mundo), provas da existência daquela fugidia partícula elementar.
Aos 53 anos, Fabiola Gianotti tornou-se, no início deste ano, a nova directora-geral do CERN – e a primeira mulher a ser escolhida para ocupar este cargo nos mais de 60 anos de vida da instituição (fundada em 1954).
Fabiola Gianotti já era, na altura do anúncio, uma personalidade de renome internacional: em 2011, fizera parte da lista das “100 mulheres mais inspiradoras” do diário britânico The Guardian. Claro que essa notoriedade aumentou nitidamente desde então: foi candidata a “Pessoa do Ano” da revista Time em finais de 2012; esteve na lista das “100 mulheres mais poderosas” da revista Forbes em 2013; e, também em 2013, considerada uma das “maiores pensadoras globais” pela revista Foreign Policy.
Eram inicialmente três os candidatos à sucessão do físico alemão Rolf Heuer, que liderou o CERN durante os últimos sete anos. Mas “foi a visão de Fabiola Gianotti para o futuro do CERN como líder mundial dos laboratórios de aceleradores, aliada ao seu profundo conhecimento do CERN e da área experimental da física das partículas, que nos levou a esta escolha”, explicou em comunicado Agnieszka Zalewska, presidente do Conselho do CERN. O conselho é a autoridade máxima da organização e é composto por dois delegados de cada um dos 21 Estados-membros do CERN, entre os quais Portugal.
Em meados de Fevereiro, a nova directora-geral apresentou, numa conferência de imprensa transmitida via webcast – e obviamente num ambiente muito menos bombástico e emotivo do que em 2012 – os seus planos para o futuro deste laboratório global, situado na fronteira franco-suíça e onde milhares de cientistas, engenheiros, técnicos de todos os cantos do mundo contribuem para um objectivo principal: fazer investigação em física ao nível mais fundamental.
De bailarina a cientista
Magra, abundante cabelo escuro, porte elegante, Fabiola Gianotti fala um inglês impecável com sotaque italiano e faz prova de um subtil sentido de humor acompanhado de um evidente rigor científico. Também elegante – e ao mesmo tempo discreta – na maneira de vestir, a sua aparência contrasta com o estereótipo do cientista (homem), mal vestido e despenteado. O toque final são os seus brincos de pérolas e os “emaranhados” de colares, de várias cores e feitios, que já fazem parte da sua imagem de marca.
Fabiola Gianotti nasceu em Milão em 1962, e em 1989 doutorou-se em física experimental na Universidade daquela cidade do Norte de Itália. Trabalha no CERN desde 1994 e, em 2009, foi eleita porta-voz (ou seja, líder) da experiência ATLAS – uma das duas experiências “rivais” – sendo a outra a experiência CMS – que em paralelo detectaram o bosão de Higgs.
Numa entrevista dada há semanas ao diário argentino La Nación, Fabiola Gianotti evocava as suas origens familiares: “O meu pai era geólogo e a minha mãe interessava-se pelas humanidades. Cresci num ambiente variado e culturalmente rico. Herdei a curiosidade e o amor pela natureza do meu pai e a paixão pelas artes e as humanidades da minha mãe.”
Em linha com este “encontro de culturas", estudou grego, latim, filosofia, quis ser bailarina clássica no Bolshoi, “mas quando chegou o momento de escolher uma profissão, foi a ciência que ocupou o primeiro lugar”, lê-se ainda no mesmo jornal.
“A outra paixão dela é a música, ela toca muito bem piano”, disse ao PÚBLICO a cientista portuguesa Ana Henriques, do CERN, que a conhece bem. “A Fabiola é uma pessoa com uma energia e com qualidades científicas e humanas de excepção”, acrescentou. Ana Henriques foi responsável por um dos complexos instrumentos do detector ATLAS (o “calorímetro hadrónico”) quando Fabiola Gianotti dirigia as cerca de 3000 pessoas (do CERN e de centros de investigação de todo o mundo) envolvidas naquela grande experiência.
“Tenho trabalhado em estreita colaboração com a Fabiola desde o início da concepção da experiência ATLAS, há mais de 20 anos”, diz-nos ainda Ana Henriques. “E nos últimos dois anos, ela coordenou um grupo de cientistas, de que fiz e ainda faço parte, para conceber um novo detector para um possível acelerador de protões com sete vezes mais energia do que o LHC, que esperamos venha a ser aprovado no futuro e a ser construído no CERN.”
Para Ana Henriques, Fabiola Gianotti tem “dado a vida” pela ciência. "Sinto-me muito orgulhosa de que seja hoje directora-geral do CERN e a primeira mulher a ocupar esse lugar!”, exclama.
“Acho que a Fabiola é uma líder exemplar. Procura sempre com muito cuidado a coisa certa a fazer e acaba sempre por encontrá-la!”, disse-nos por seu lado Joe Incandela, que liderou a experiência CMS quando Fabiola Gianotti liderava a ATLAS. “E é uma grande defensora da ciência fundamental, com um grande sentido do dever nessa matéria”, acrescenta este físico norte-americano. “Conheço-a desde finais dos anos 1980 e sempre achei que era extremamente profissional, de trato agradável, com uma grande força de vontade mas também um grande coração. Tem um fantástico sentido de humor e pode ser muito divertida – e às vezes usa o humor com mestria para reduzir a tensão nas reuniões.”
Bosão, LHC & Co.
Mas o que é o bosão de Higgs e como é que o LHC permitiu apanhá-lo? O bosão de Higgs é a partícula que, segundo o chamado modelo-padrão da física das partículas, confere massa a todos os outros componentes subatómicos da matéria. Sem o bosão de Higgs, o Universo tal como o conhecemos não existiria. Mas apesar de ter sido teorizado nos anos 1960, foi preciso construir uma grande máquina como o LHC para o detectar.
O LHC é essencialmente um tubo circular subterrâneo, com 27 quilómetros de perímetro, onde colidem dois feixes de protões lançados em sentido oposto quase à velocidade da luz. Ao longo do percurso estão instalados diversos detectores que captam e identificam as diversas partículas que saem disparadas quando pares de protões destes feixes colidem frontalmente.
Como as colisões são extremamente raras, para fazer aumentar o seu número é preciso lançar os protões à máxima velocidade possível dentro do tubo – ou seja, com a máxima energia possível.
Na altura em que detectou o bosão de Higgs, o LHC não estava em condições de funcionar à sua potência máxima. Concebido para que a energia das colisões atingisse os 14 TeV (tera electrão-volts), um grave problema técnico ocorrido em 2008 tinha obrigado os operadores do acelerador a refrear a sua impaciência e a reduzir a energia permitida dentro do acelerador para pouco mais de metade (8 TeV). Mesmo assim, isso bastou para, entre 2011 e 2012, o bosão de Higgs ter ficado ao alcance dos dois grandes “olhos” – os detectores ATLAS e CMS – instalados no percurso dos feixes de protões e concebidos para “apanhar” a fugidia partícula caso ela dignasse mostrar-se.
As experiências ATLAS e CMS recorriam a instrumentos e modos de detecção totalmente diferentes uma da outra e ambas tinham estado a recolher, de forma independente, dados de colisões desde 2011 (altura em que o LHC recomeçou a funcionar a meio gás após o referido problema técnico).
Durante todo o decorrer das experiências, houve também uma grande exigência de sigilo mútuo, para evitar que as respectivas equipas se influenciassem mutuamente, o que poderia interferir com qualidade dos resultados finais. Por incrível que pareça, não houve fugas significativas de informação ao longo de todo esse tempo – o que reforçou ainda mais a confiança na descoberta quando a ATLAS e a CMS anunciaram resultados extremamente semelhantes.
A seguir, durante cerca de dois anos, o LHC foi “desligado” de maneira a ser remodelado e actualizado – e, claro, para ter hipóteses de vir atingir a sua potência máxima prevista. E de facto, desde que voltou a entrar em funcionamento em 2015, tem funcionado a 13 TeV. Ainda não é certo que venha a atingir os 14 TeV, mas mesmo assim, todos – e Fabiola Gianotti e a nova direcção do CERN em especial – esperam que esta máquina nos surpreenda ainda.
Seja como for, estamos agora a semanas do despertar da grande máquina, após um curto sono invernal de manutenção a que é submetida todos os anos. O LHC vai reentrar em funcionamento em finais de Março e todos esperam que leve a física das partículas para novos patamares.
Para além do Higgs
Na conferência que deu há 15 dias sobre os seus planos para o futuro, Fabiola Gianotti começou por delinear as três grandes componentes programáticas da sua “legislatura” de cinco anos, que durará até 2020 mas que terá necessariamente consequências a muito mais longo prazo.
A sua primeira prioridade, como não podia deixar de ser, é o LHC, previsto para funcionar até 2035. “Nos próximos anos, vamos actualizar este acelerador”, disse Fabiola Gianotti.
Em particular, está previsto puxar as capacidades do LHC muito para além do que tinha sido pensado inicialmente. Assim, a partir de 2025, a sua “luminosidade” – ou seja, o número de colisões que ocorrem por segundo dentro do acelerador – deverá ser dez vezes maior do que hoje. Este “LHC de alta luminosidade”, como já é chamado, “deverá produzir até 15 milhões de bosões de Higgs por ano, comparado com os 1,2 milhões produzidos entre 2011 e 2012”, explica o CERN no seu site, “permitindo observar processos que hoje não estão ao alcance do LHC”.
“Também vamos encetar um programa mais lato de estudo da matéria escura e da antimatéria – e ainda, em preparação para o futuro, desenvolver novas tecnologias de aceleradores”, acrescentou Fabiola Gianotti.
A um jornalista do diário La Tribune de Genève presente no local, explicou então em francês: “Já estamos a desenvolver tecnologias para melhorar as máquinas actuais e para equipar futuras máquinas”, tais como um futuro acelerador, já referido por Ana Henriques, que poderá atingir 100 TeV de energia e ter 100 quilómetros de perímetro. “Mas a nossa prioridade absoluta continua a ser o LHC”, insistiu.
E à pergunta – desta vez em italiano – de um jornalista da TV suíça italiana sobre o que achava que seria a próxima maior descoberta no CERN, Fabiola Gianotti respondeu (igualmente em italiano) que não faz “profecias”: “Limito-me a observar e estou pronta a presenciar as novidades que a natureza nos reserva.”