O estranho caso do Sr. Malick
Continua fortemente idiossincrático, mas enredado num labirinto que tende a anular-se a si mesmo. Estamos muito longe do tempo das suas obras-primas.
Depois de um período de 25 anos que o deixou à beira da lenda (apenas três filmes nesse intervalo entre 1973 e 1998, e que filmes: Badlands, Dias do Paraíso e A Barreira Invisível), Terrence Malick acelerou o ritmo, e com Cavaleiro de Copas vai no quarto filme em dez anos. É também o período mais estranho e menos satisfatório da sua obra. Que não perde singularidade por isso: a coerência estilística e temática destes últimos filmes é total, a ponto de se poder dizer que Cavaleiro de Copas é um filme tirado a papel químico de A Essência do Amor (o penúltimo), que por sua vez era uma “ramificação” de A Árvore da Vida (o antepenúltimo, e o melhor Malick deste período).
Narração interiorizada, cenas fragmentadas, uma découpage em planos por norma muito curtos, uma “desnaturalização” da imagem e do som que aproxima tudo dum registo, se não onírico, da ordem do feixe memorialista, como flashes, visões, que viessem à mente de um protagonista a passar uma parte da sua vida em revisão. Assim era A Essência do Amor, assim é Cavaleiro de Copas, e basta um minuto de filme para a coisa ter, inequivocamente, o dedo de Malick.
Que a “coisa” depois adquira uma proporção verdadeiramente significativa é outra questão. Estamos bem longe daquela reverberação panteísta do primeiro trio de filmes de Malick, onde tudo e todos, seres humanos e natureza, se integravam e relacionavam de maneira por vezes espantosa. A dimensão “mística”, em todos os sentidos, continua a ser trabalhada por Malick, de maneira porventura mais evidente (Cavaleiro de Copas funde passagens de textos cristãos com uma divisão por capítulos inspirada nas cartas do tarot), de acordo com o percurso de “arrependimento” e superação do seu protagonista, Christian Bale, um “homem do cinema” (Hollywood está ao fundo, é mais uma “crítica” da sua “vacuidade”) a mastigar uma vida de deboches vários. Mas é como se nada nunca se materializasse, à imagem daquela “evanescência” que Malick persegue até à náusea (os contraluz ao crepúsculo, que já infestavam A Essência do Amor), e tudo se resumisse a uma colecção de planos e raccords de uma beleza superficial (e nalgumas passagens, dignas de uma estética de publicidade), que se acumulam sem adquirir substância, e sem deixar que a narrativa revele personagens de corpo inteiro, apenas silhuetas mais ou menos caricaturais, que vão e vêm na maior indiferença. É um estranho caso, o de Terence Malick: continua fortemente idiossincrático, mas enredado num labirinto que tende a anular-se a si mesmo. Estamos muito longe do tempo das suas obras-primas.