Ricardo Toscano, um saxofonista em ascensão

Após três concertos esgotados na Culturgest e no Centro Cultural de Belém, estaciona o seu quarteto no Hot Clube durante três noites. É tempo de conhecer um saxofonista em claro momento de afirmação.

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Em 1971, Jim Marshall disparou toda uma série de fotografias de Miles Davis a treinar boxe que figura entre os mais impressionantes documentos visuais do trompetista. Além de praticar boxe, Davis não escondia a sua babada admiração por lutadores como Sugar Ray Robinson ou Joe Louis, e compôs a banda sonora do documentário Breaking Barriers dedicado ao boxeur Jack Johnson. Marshall acabaria por baptizar oficiosamente a série como Don’t Hit Me in the Mouth, I Gotta Play Tonight, citando o pedido que ouvia o trompetista dirigir aos seus companheiros de treino.

Em semanas de concerto, Ricardo Toscano segue a mesma regra e evita treinos de contacto. Chegado ao boxe um pouco por acidente, mas sem ignorar a pesada ligação histórica entre jazz e boxe – praticado por Davis ou Red Garland, alvo de ensaios por Matthew Shipp –, o saxofonista sente-se embalado em ambas as práticas por coincidentes dinâmicas de aceleração e padrões rítmicos. Um treino de boxe, diz, fá-lo pensar em solos de bateria de jazz. “Mas o boxe é algo em que não sou natural, em que não comecei cedo”, comenta. “Aquilo que fiz desde muito cedo foi jogar à bola e ouvir jazz.” Não custa a acreditar que o jazz faz parte da sua natureza quando se ouve o fraseado temerário do jovem saxofonista. Aos 22 anos, Ricardo Toscano terminou 2015 a esgotar duas datas na Culturgest e iniciou 2016 a esgotar o Centro Cultural de Belém. Agora, a 3, 4 e 5 de Março, o seu quarteto toma conta do Hot Clube de Portugal durante três noites, após uma passagem pelo Ciclo de Jazz da Amadora (dia 2).

Filho de um saxofonista profissional, agradece ao pai “o melhor que podia ter feito: apenas transmitiu a sua paixão pela música”. Em vez de lhe enfiar o estudo de um instrumento pela goela abaixo, familiarizou-o desde criança com discos de Cannonball Adderley em dueto com Bill Evans (Know What I Mean), Miles Davis (Kind of Blue) e John Coltrane (Blue Train). “Esses foram os principais”, recorda. “Desenvolvi toda a minha articulação física ao ouvir o Cannonball. Do Coltrane, bebi o som e o fraseado daquela altura – ainda não tinha ouvido a fase dos anos 60. São duas influências muito grandes, sendo que o Coltrane me seduz mais pelo seu lado espiritual. E quando se cresce a ouvir isso não há muito a fazer.” Tanto assim que ao matricular-se no Conservatório enquanto aluno de clarinete clássico, Ricardo fazia-o já sabendo que o seu futuro estava no jazz e no saxofone.

“Sofri um bocado com essa malta”, desabafa acerca da sua passagem pelos estudos clássicos, apontando o dedo acusador a professores especializados em “criar alunos com muitos complexos”. Agora, diz, começa a ser tratado com alguma credibilidade, desde que foi avistado ao lado de Mário Laginha no ressuscitado Sexteto de Jazz de Lisboa. Mas calma, Ricardo Toscano tem tempo. Ainda agora começou. E parece quase piada que se diga “um procrastinador” como se, desde que foi revelado à música portuguesa na Festa do Jazz de 2010 (integrado no combo do Hot Clube), ter no currículo uma aula privada com Wynton Marsalis em Nova Iorque (que gostava de o ver por lá mais vezes), actuações com o seu quarteto no Estoril Jazz e no Angra Jazz, sucessivas salas esgotadas, chamado para tocar com o Sexteto de Lisboa, o Decateto de Nelson Cascais, o Mingus Project ou formações de Júlio Resende, tudo isto impondo-o como um nome seríssimo do jazz português, fosse coisa pouca.

Álbum? Duplo
A definição do caminho de Ricardo Toscano, para lá de sideman, ziguezagueando num estilo hard bop herdeiro de Coltrane, Parker ou Ornette Coleman, começaria a esboçar-se com um telefonema do músico e programador Carlos Martins, em 2013. Responsável pelo alinhamento de um fim-de-semana no Hot Clube de Portugal no âmbito da Lisbon Week, Martins ligou-lhe e perguntou “Não tens uma banda tua, com putos novos?” Toscano não tinha. Mas era coisa que se arranjava rapidamente. E rapidamente reuniu à sua volta um grupo que o equivalia em juventude, amor ao período histórico do jazz que o saxofonista elege como o mais criativo de sempre – anos 50 e 60 –, efervescência interpretativa e absoluta solidez. “É tudo malta que respeita a tradição desta música, que quer aprender e que gosta de swing, de groove”, justifica a escolha de João Pedro Coelho (piano), Romeu Tristão (contrabaixo) e João Pereira (bateria). “Hoje em dia o groove está um bocado mal visto, a malta tem vergonha de ser cheesy ou azeiteira. Muitos têm medo de tocar temas como o Watermelon Man [de Herbie Hancock], mas nós divertimo-nos e não vemos isso como uma piada.”

Esse entendimento natural e a facilidade com que os baloiçam entre reportório ultra melodioso e a improvisação livre levou a que Toscano percebesse logo na primeira noite que havia ali uma química instantânea a implorar para ser explorada a fundo. É nesse quarteto que tem investido mais a sério e na sua relação com esses músicos que tem estabelecido a sua linguagem. E é com eles que planeia gravar pela primeira vez em nome próprio, ainda este ano, idealmente um álbum duplo. Não enquanto reflexo de uma ambição titânica e de um ego descontrolado, mas porque o seu primeiro disco deveria obrigatoriamente acomodar dois registos: um documento daquilo que Toscano tem apresentado ao vivo, passando pelos reportórios dos quartetos de Coltrane e de Wayne Shorter ou pelo quinteto de Miles Davis – “dá-nos muito gozo tocar essas coisas, em que não estamos a tentar soar como eles soavam, mas a tentar descobrir os nossos caminhos ali no meio”, diz –, mas arriscando também uma suite original arrancada da sua imaginação.

Ricardo Toscano (saxofone alto); João Pedro Coelho (piano); Romeu Tristão (contrabaixo); João Pereira (bateria)

Ciente de que “este início [de carreira] não podia estar a ser melhor”, Ricardo Toscano quer trabalhar num “futuro a curto, médio, longo prazo” com o quarteto e voltar às experiências em duo com João Paulo Esteves da Silva e enquanto solista convidado da Orquestra de Jazz de Matosinhos. Objectivos a que se juntam um possível concerto com o pianista norte-americano Jason Moran – “Ele não tem medo”, elogia – e a tentativa de, juntamente com Pedro Moreira, levar a palco uma recriação do álbum histórico Bird With Strings. O álbum de Charlie “Bird” Parker, que Toscano coloca nos píncaros enquanto exemplo máximo de beleza, tem-lhe ensinado “a tocar canções de forma directa, a fazer com que o saxofone soe a palavras”. “Isso hoje não está muito na moda”, atira, “a malta acha que aprende os standards e já está, pode seguir para a jam session e dar seca às pessoas.” A sua via é outra, a de uma recuperação, quase romântica e profundamente inspirada, de um jazz de outrora servido agora como um prato quente.

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