“A Ana Vieira sofria com o desamor que o país sempre dedicou aos seus artistas”
João Fernandes, subdirector artístico do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid, e comissário da exposição Ana Vieira, na Casa de Serralves, em 1998-99.
Portugal raras vezes teve oportunidade de conhecer a obra de Ana Vieira, uma das suas artistas mais fascinantes. O mundo, tão-pouco. Lembro-me de a cineasta Agnès Varda me manifestar o seu encantamento pela descoberta dos trabalhos da Ana, assim como o seu espanto indignado pelo facto de a sua obra ser tão pouco conhecida.
Tive o privilégio de trabalhar com a Ana na sua primeira exposição antológica, quando ela transformou a Casa de Serralves nessa casa de labirintos e mistérios que o seu trabalho construía, interrogando as convenções e os fantasmas que sempre esconderam a mulher dentro dessa casa portuguesa, com certeza.
Pelo meio, antes e depois das maravilhosas exposições de Serralves e da Gulbenkian, a Ana surpreendia com projectos seus sempre tão raros quanto especiais. Todas as suas exposições foram sempre bem recebidas por artistas (a Ana nunca deixou de ser uma artista de artistas...) e públicos, mas sempre um manto de silêncio caía sobre a sua obra depois de cada apresentação.
A Ana cultivava o seu mistério, mas sofria com a desatenção e o desamor que o país sempre dedicou aos seus artistas. As colecções privadas quase sempre a ignoraram, numa demonstração triste das suas vaidosas ignorâncias, e as instituições eram tão poucas que pequenas se tornavam para a grandeza da sua obra.
Nos últimos anos, a Ana vivia indignada com a pobreza de espírito revelada pelos governantes no seu constante esquecimento e menorização das artes. Quanto se perdeu pelo facto de tão pouco ter sido desafiada a inventar os momentos em que nos surpreendia com esses extraordinários jogos de ocultação e revelação através dos quais interrogava o acto de ver.
Espero bem que a efemeridade de tantos desses projectos possa ser vivida no futuro pelos muitos que não tiveram ocasião de os conhecer. Que saibam que não se pode contar a história da arte do nosso tempo, ou a história das mulheres em Portugal, sem contar com o seu nome.
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