Por detrás da frontaria
O ser humano não muda assim? Pois não, muda mais depressa.
Provavelmente já viram o anúncio, num qualquer canal de televisão: uma mulher aproxima-se de um carro, num parque de estacionamento, e começa a escavacá-lo com fúria, começando pelos vidros. Segundos depois, um homem aponta o comando para o seu automóvel, ali ao lado, e não o abre. A imagem foca os dois, espantados: era o carro dele que estava a ser destruído, confundido com o outro, ambos cinzentos. Nisto, o anunciante faz desfilar um lustroso carro azul. Como quem diz: tivesse um carro assim, diferente, nada disto acontecia.
Tirando a violência da coisa, o raciocínio é enganoso. A vizinha despeitada por razões passionais (estaria o automóvel a ser castigado no lugar de um marido ou namorado?) escavacaria com igual prazer o carro azul lustroso, se ela e o vizinho cedessem em simultâneo à propaganda. Sobra a fúria. E esta não é atribuível aos carros, mas sim aos humanos.
Outro exemplo: no julgamento dos atritos de um casal de figuras públicas, foi lançada pela juíza esta dúvida, ao ver as fotos de um casamento “maravilhoso”: como podia tal homem passar a monstro? “Ora o ser humano não muda assim.” Pois não, muda mais depressa. Sem comparar com tal caso em concreto, o que não falta são exemplos em contrário. É raro um criminoso cujo passado a vizinhança não elogie. “Era tão simpático, vinha aqui sempre beber o café, dava bons-dias a toda a gente.” Sim, e os torturadores levavam com esmero os filhos à escola; e até os nazis cuidavam com doçura dos seus animais domésticos.
O que prova isto, sem invocar Dr Jekyll e Mr Hyde? A terrível complexidade humana. No texto de uma conferência realizada no Brasil em 1954, escrito a propósito do “drama do emigrante português” e integrado num livro de reedição recente, Traço de União (ed. Glaciar, 2016), Miguel Torga escreveu o seguinte: “As más ou boas maneiras são valores de superfície. O significativo é o que está por detrás da frontaria.” Nem mais.