Georges Aperghis: "Quero reencontrar o ouvinte activo"
O compositor residente da Casa da Música nesta temporada acaba de receber o maior prémio pecuniário de composição do mundo. Nesta entrevista, explica como chegou ao seu peculiar teatro musical – e o que vamos ouvir no Porto em Outubro.
Nos últimos tempos tem recebido diversos prémios, entre os quais o Leão de Ouro da Bienal de Veneza. Já este mês, foi distinguido com aquele que será o maior prémio pecuniário de composição do mundo, o Fronteiras do Conhecimento da Fundação BBVA, que usará integralmente para fazer encomendas a jovens compositores. Georges Aperghis (Atenas, 1945) vive em Paris desde 1963 e é uma das maiores referências no domínio do teatro musical.
Esta sexta-feira estreia no festival musica viva, em Munique, o seu Concerto para acordeão e orquestra, encomenda conjunta da Rádio da Baviera e da Casa da Música (CdM), que o convidou para ser seu compositor residente nesta temporada de 2016.
Como posiciona o seu trabalho no contexto da música dos nossos dias?
Procurei sempre situar-me à margem e não entrar no sistema. Gosto bastante de ouvir a música dos outros, mas tenho necessidade do meu canto, de fazer a música que nunca ouvi e que quero ouvir. Procuro surpreender-me a mim mesmo. Na verdade, é a curiosidade que me leva a fazer misturas de sons ou de harmonias ou de ritmos, para ver até onde podemos ir.
Mas podia ter trabalhado noutros domínios e escolheu precisamente o da música.
Pois, em criança andava entre a música e a pintura e, na verdade, creio mais que fui feito para as artes visuais, já que me é mais próximo aquilo que se passa actualmente na pintura, em instalações... Quando faço espectáculos, encontro em cena um lado visual com a música, graças ao vídeo, ao corpo dos actores, dos músicos ou dos cantores. É disso que mais gosto: a música que se prolonga em cena.
Aos 17 anos, foi para Paris estudar música...
Naquela altura queria ser maestro, mas comecei a escrever umas coisinhas. Aos poucos fui abandonando os estudos e comecei a encontrar-me com compositores que na época eram muitíssimo conhecidos. Não queria ir para uma escola: queria aprender. Procurei André Jolivet, Xenakis, que foram muito simpáticos em receber-me (eu só tinha 18, 19 anos!). Mostrava-lhes o meu trabalho e, através das suas reacções, ia aprendendo...
Mas apresenta-se como auto-didacta. Aprendeu tudo sozinho?
Não, estudei também formalmente – fuga, contraponto, isso tudo – mas não segui uma “educação de compositor”. Não tive aulas de composição. O que queria aprender dos compositores era a sua reacção ao que eu escrevia. Não queria frequentar a aula de escrita, que me faria sentir um pouco confinado.
Os compositores que procurou são as suas referências?
Não forçosamente. Estive com Jolivet duas ou três vezes. Aprendi algumas coisas com o que ele me disse, mas eu era muito mais sensível à música de Xenakis, por exemplo.
Que, mesmo assim, é muito diferente da sua.
Sim, mas houve um período em que estive muito próximo dele, durante um ano ou dois. Aprendi imenso através do que me dizia. Depois afastei-me um pouco, porque ele era muito intenso e eu era jovem; era preciso que eu encontrasse o meu caminho e o meu próprio mundo. Xenakis compreendeu isso muito bem e permanecemos amigos até à sua morte.
O que vem o prémio Fronteiras do Conhecimento mudar na sua vida?
Esta temporada tenho vários prémios. Em Outubro recebi o Leão de Ouro em Veneza, seguiu-se outro prémio, que vou receber em Munique, e agora este. Mas este é enorme! É uma honra imensa porque todos os que me precederam são compositores magníficos! Kurtag, Boulez, Lachenmann, Reich... É um pouco demasiado! [risos] Em todo o caso, “calhou-me”. Estou a tentar perceber o que fazer com o dinheiro – porque é muito – para ajudar os jovens compositores. Preciso de criar uma estrutura que me permita fazer encomendas (uma fundação ou outro tipo de organismo, tenho de estudar isso).
Porquê os jovens compositores?
Estamos numa época muito difícil. Ao início, eles têm a ilusão de que vai funcionar. Durante dois ou três anos têm pequenas encomendas e residências. Depois já não têm nada, porque há outros que chegam e é a novidade que interessa a quem faz as encomendas. A mim interessa-me agarrá-los quando estão a começar a cair dessa onda.
Se este prémio tivesse chegado há uns 30 anos, teria mudado a sua vida?
A minha forma de viver, creio que não. Talvez tivesse um atelier um pouco maior – até há pouco tempo era minúsculo, se bem que eu até gostava porque tinha tudo à mão. De resto, quero apenas fazer com que outros possam beneficiar do prémio.
A sua abordagem à música tem alguma relação com o conceito de Gesamtkunstwerk [obra de arte total]?
Não penso nisso mas, na verdade, os espectáculos são um pouco assim, pela força das coisas, porque temos os músicos em cena, as imagens directas em vídeo, a electrónica...
É tudo concebido por si?
Em conjunto com os artistas, faço a iluminação, o vídeo – frequentemente em directo. Trata-se de uma espécie de fluxo que passa entre diferentes media. Não é como a ópera, em que temos primeiro o texto e a música e, depois, a encenação. Não é uma encenação, é o prolongar da música. É essa a “minha cena”.
Mas não é ao seu teatro musical que teremos oportunidade de assistir em Portugal este ano. Como são as duas obras que ouviremos na CdM, no último trimestre de 2016?
Há sempre teatro na música, mas não é esse teatro musical, não. O Concerto para acordeão e orquestra [encomenda conjunta da CdM e da Rádio da Baviera que tem a sua estreia mundial esta sexta-feira em Munique e chegará ao Porto a 22 de Outubro] não é um concerto no sentido romântico: é mais um instrumento que entra em aventuras na orquestra e que tem um amigo, um pequeno órgão. São como Dom Quixote e Sancho Pança, ou Don Giovanni e Leporello. Apesar de ser [uma peça] para orquestra sinfónica, por vezes funciona como música de câmara...
Como em Mahler.
Exacto! Gosto imenso disso. Temos violino, acordeão, piccolo, torna-se textura, depois a orquestra cresce, temos a massa orquestral...
E a outra obra?
Da Bloody Luna (para violoncelo e ensemble) já me esqueci um pouco – escrevo tanto que acabo por esquecer as peças – mas creio que o me marcou foi a surpresa de a peça começar cheia de força e depois tombar rapidamente para algo muito trágico, muito escuro. É como se tivesse acontecido algo grave, mas não acontece nada, é simplesmente a peça que cai em si própria.
Quando começa uma peça nova, sabe o que é que vai escrever ou deixa-se guiar pelo que a música for pedindo?
Há peças em que sei e, nesses casos, também acontece acabar por mudar tudo; há outras em que não sei, vou tacteando, depois as coisas surgem...
Diz que a sua música trabalha com a memória do público. O que quer isto dizer?
Gosto bastante que haja sequências que o público possa reconhecer, motivos, cores, sequências rítmicas, enfim, as frases que compõem a peça... Quando esses elementos voltam a surgir numa sintaxe diferente, contam forçosamente outras coisas, mas são reconhecíveis. Acontece o mesmo com a música clássica. Quero reencontrar o “ouvinte activo”, evitar o público passivo. Interessa-me procurar o meio certo.
Quais são os compositores que gosta de ouvir?
Ah, eu gosto de todos e de tudo! Ouço Rolling Stones, gosto bastante de rock... Mas o que ouço a toda a hora é Beethoven, porque já vem da minha infância... É o meu grande amor. Não há volta a dar!
O que diria a alguém que quisesse tornar-se compositor?
Creio que o elemento primordial é encontrar-se a si próprio, saber para que é que foi feito, ser honesto consigo mesmo. Mesmo que tenhamos sido feitos para uma coisa muito pequena, devemos cultivá-la e ir até ao fim dessa pequenina coisa. É preciso conhecermo-nos e saber onde é que podemos ser úteis para a música. Creio que essa é a minha maior preocupação. Porque, aos poucos, vamos adquirindo o conhecimento e saberemos como escrever; se nos escondermos atrás da escrita, ficamos perdidos. Temos de nos renovar constantemente, procurar outras coisas.
Mas acredita que é melhor aprender-se consigo próprio ou frequentar uma escola?
Cada um tem de encontrar a seu caminho. O meu é um pouco estranho, mas há vários: há aulas diferentes, pode-se passar de um professor para outro...
Também ensina?
Já ensinei teatro musical em Berna, durante alguns anos, e costumo ir a Darmstadt, aos cursos bienais de verão, onde há imensos compositores. Não tento ensinar porque não há uma verdade em si mesma – tudo é relativo; mas tento compreender o que os alunos querem fazer e discuti-lo. Discutimos mais sobre a própria música do que sobre os detalhes da partitura, que eles hão-de aprender.
Como lhe parece a música nos nossos dias?
Em Darmstadt, costumo ver 150 compositores (como há outros professores, deve haver uns 300 jovens). Muitos já estão demasiado normalizados, mas alguns são “loucos”, fazem coisas... talvez belas, portanto creio que há sempre gente para continuar a aventura.
Adivinha-se alguma nova corrente?
Não sou muito sensível a correntes, embora goste bastante das peças importantes que foram escritas em cada uma. São sempre as peças que me interessam, não a forma de pensar. Mesmo em Schönberg, aquilo de que gosto são algumas peças. Não gosto que haja uma espécie de teoria que imponha determinado modo de fazer. Cada um verá como precisa de fazer. Por exemplo, é-me indiferente se algumas peças de Grisey são ou não espectrais: o que me interessa é que são belíssimas.
Como define uma peça bela?
Forçosamente é uma peça que me toca e que me interessa intelectualmente, no sentido de ver como é feita, o que traz de novo. Quando o compositor nos ajuda a descobrir alguma coisa que não conhecíamos, há uma emoção que vem com a descoberta. E não há universalidade. Cada um vê à sua maneira.
Que projectos tem em mãos?
Estou a escrever uma peça para o agrupamento de câmara Musikfabrik (Colónia), que tem músicos de que gosto muito. É uma nova aventura.
E em teatro?
Tenho um projecto com electrónica para daqui a dois anos, no IRCAM, cujo tema é “o verdadeiro e o falso”. Há um homem que parte de um robô.
Disse que “há uma poética musical peculiar à electrónica, que é o mesmo tipo de emoção que vivemos quando assistimos à morte de um robô”.
Sim, há uma emoção muito particular com a electrónica, que nada tem a ver com a emoção de quando ouvimos um violoncelo a tocar: é completamente diferente. Isso interessa-me muitíssimo. Por exemplo, no 2001 [Odisseia no Espaço], de Kubrick, quando o computador está para morrer, canta – este género de emoção é novo e inacreditável, porque o robô não pode defender-se, é como uma criança e está absolutamente só.
Qual foi a experiência mais marcante por que passou?
Deixar a Grécia aos 17 anos. E creio que são as experiências diferentes e marcantes que nos definem.
Considera-se um homem do seu tempo?
Tento estar presente e reparar no que se passa, ler, perceber. Não gosto que se diga que a nossa época é pior do que a anterior: cada época é simultaneamente formidável e medonha. Houve sempre guerra e, infelizmente, continua a haver. Ao mesmo tempo, as pessoas são hoje mais criativas, porque têm aparelhos como o telemóvel – podem saber e fazer muita coisa. Tem-se acesso a tudo. Como é que cada um se comporta com isso é já outro problema, mas sempre foi assim.