Vamos com ele para o inferno
Saul é Sonderkommando: acompanha os prisioneiros judeus até às câmaras de gás, retira-lhes os objectos de valor, remove as provas materiais da morte antes de os cadáveres serem reduzidos a cinzas. Ele é o companheiro do espectador. Vamos com ele pelo inferno que é O Filho de Saul.
O Filho de Saul, a primeira longa-metragem do realizador húngaro e judeu László Nemes, passa-se em Outubro de 1944 e mostra a história dos prisioneiros, essencialmente judeus, que eram destinados à sádica tarefa de “processar” os recém-chegados aos campos de extermínio: os Sonderkommando. Ficavam encarregados de dirigir as vítimas inocentes para as câmaras de gás, retirar-lhes rapidamente os objectos de valor e remover todas as provas materiais da sua morte antes de reduzirem os cadáveres a cinzas nos crematórios. O destino de cada Sonderkommando tinha um limite temporal de apenas alguns meses, até os nazis o executarem, de forma a eliminar as testemunhas das suas atrocidades. Uma nova remessa de escravos era rapidamente trazida para substituir a anterior equipa.
No filme de Nemes, um elemento de um Sonderkommando de nome Saul deseja enterrar com as devidas honras cerimoniais uma criança que pensa ter identificado como sendo o seu próprio filho. No meio de toda aquela loucura, como conseguirá ele manter a sua dignidade, a dignidade do seu filho, e de todos os outros que estão a ser assassinados? Pela cacofonia de alemão, húngaro e iídiche do campo, a câmara segue apenas a perspectiva de Saul, o resto pouco é focado. Nada é explicado, sugerindo o verdadeiro caos da situação do extermínio. Mas gradualmente o Sonderkommando começa a planear o que virá a revelar-se como uma fugaz revolta.
O que lhe deu a ideia para este filme?
Já tinha lido sobre os chamados Os Rolos de Auschwitz, escritos pelos membros dos Sonderkommandos, esses prisioneiros que estavam isolados dos restantes e eram forçados a trabalhar nos crematórios e a apagar os vestígios do extermínio. Essas pessoas enquanto estavam presas observaram e tiraram notas das suas vidas do dia-a-dia e escreveram aquilo que era suposto ser um testemunho, não apenas da sua existência mas também, e ainda mais importante, do extermínio. Estas notas foram enterradas no chão e algumas delas foram encontradas após o fim da guerra. A memória do Holocausto é algo com que tenho vivido desde a minha infância, e subitamente descobri uma forma de expressar essa memória, fazendo um filme sobre isso.
Mas deixe-me contar-lhe o que o nosso consultor histórico me escreveu. Disse-me que calculou que, de um total de 430 mil judeus húngaros que foram deportados em oito semanas, cem mil eram crianças de menos de 18 anos que foram enviadas para as câmaras de gás. E essas crianças nunca tiveram um funeral. É uma ferida em aberto, e consegue-se senti-la. As pessoas tendem a dizer que este filme é apenas mais uma história sobre o Holocausto, como se fosse mais uma história sobre o Titanic, alguma coisa mítica. Mas não é apenas mais uma história. Para nós, é o presente, não é um mito.
A lista de filmes que abordam o Holocausto já é longa. Como fez para se distinguir de filmes como A Lista de Schindler (Steven Spielberg, 1993), Noite e Nevoeiro (Alain Resnais, 1955) ou Shoah (Claude Lanzmann, 1985)?
Não quis apenas afastar-me. Quis fazer um filme que fizesse sentido para mim e para toda a actual geração. Esta geração não lida com estas histórias de sobrevivência como forma de processar o trauma do Holocausto. Esta geração não quer saber nada deste tipo de coisas, é uma geração desligada. O meu objectivo era tentar retirar esta história de dentro dos livros e trazê-la para o presente, concentrando-me num homem, um ser humano, e não ser distraído por todo o tipo de outras coisas que seríamos tentados a mostrar e a contar.
Para este filme não estava à procura de um herói e não estava interessado no ponto de vista dos sobreviventes; nem sequer estava interessado em mostrar muito da fábrica de morte. Simplesmente procurei uma perspectiva única, de forma a poder contar a história da forma mais simples e mais minimalista possível. Queria pegar em algo profundamente histórico e torná-lo muito vivo e queria reduzir tudo à dimensão de um único ser humano. Dito isto, o meu filme é muito diferente de uma história de sobrevivência como A Lista de Schindler, que é um filme muito bom, muito dramático, muito talentoso, quase épico. O meu filme não é acerca de sobrevivência, é sobre a realidade da morte. A sobrevivência é uma mentira. A sobrevivência era a excepção.
Como fez para atingir esse objectivo, a nível de estilo?
Efectivamente restringimos a nossa estratégia estética a dizer muito pouco. Quando não estamos limitados visualmente, o cinema leva-nos a níveis de grande expressividade e torna-se um espectáculo mas depois acabamos na prática com menos impacto emocional. Por outro lado, quando nos apoiamos em fragmentos e limitamos as possibilidades da visão, da percepção, acabamos provavelmente por criar algo nas mentes dos espectadores que será muito mais capaz de desencadear sugestões, associações e sentimentos.
Basicamente, a nossa abordagem foi excluir tudo o que não fosse fundamental para a história e que não representasse tudo aquilo que nos dá a ideia de onde estamos e do que está a acontecer, porque assumimos que os espectadores já terão percebido isso após os primeiros minutos do filme. Não me pareceu necessário mostrar algo especificamente acerca das circunstâncias históricas. O nosso plano era focarmo-nos na história de um homem e na sua missão, excluindo tudo o que não fizesse parte disto.
É por isso que usou tantos close-ups e iluminação difusa no filme?
Creio que é a forma mais directa e honesta de mostrar uma pessoa e o seu mundo, pois é como se estivéssemos a acompanhar alguém. Neste caso vamos com ele pelo Inferno. O espectador transforma-se numa espécie de companheiro do protagonista, que já não se consegue esconder do espectador.
Uma das principais questões nos filmes sobre o Holocausto é como representar as atrocidades. Decidiu apenas fazer algumas alusões desfocadas em fundo. Como é que esta opção se enquadra na definição estilística do filme?
Ao restringir-me apenas à perspectiva de Saul, impeço-me de representar a face do horror ou de entrar nas câmaras de gás, e pareceu-me correcto ser assim. Saul trabalhou lá ao longo de quatro meses, durante os quais perdeu a sua capacidade de ver o horror. Já não conseguia ver as atrocidades porque se habituou a elas. É por isso que desfoquei as imagens aterrorizadoras no fundo. A câmara pára à porta da câmara de gás, apenas entra depois do acto de extermínio para mostrar Saul a remover os cadáveres e a lavar os seus vestígios. Não havia possibilidade de mostrar as imagens de morte, dado que queria manter-me na perspectiva de Saul.
Por que decidiu filmar em película em vez de digital?
Eu e o meu director de fotografia, Matyas Erdely, decidimos filmar em película porque para nós ela representa a essência do cinema, a alma do cinema, a imagem física projectada é cinema, tudo o resto é algo diferente. Procurámos uma certa instabilidade nas imagens, uma certa forma orgânica e natural; o filme de 35 milímetros era o mais adequado para este propósito. Para além disso, trabalhar com película é também uma questão de disciplina e dá-nos uma noção de estarmos a dirigir; implica que tomes as tuas decisões com antecedência, e assim não podemos empurrar tudo para a sala de montagem.
O som tem um papel muito definido no filme, dado que existem tantas vozes e ruídos. Como é que isso se relaciona com a estrutura estética global?
Queríamos que os sons se mantivessem muito em bruto, não muito sofisticados. Por exemplo, tivemos de decidir acerca dos gritos vindos dos crematórios, se queríamos ou não que eles fossem muito realistas. Se fôssemos pela via realista, estávamos preocupados por talvez apenas conseguirmos ouvir pessoas a chorar, porque estavam a morrer. Pode-se dizer que em geral o som funciona como complemento das imagens. As ordens e as vozes de comando aparecem e são factos que estão misturados com as imagens; a ideia era ser muito evocativo com o som mas ao mesmo tempo não exagerar, porque queríamos que o som se mantivesse muito simples, não muito elaborado. Podemos considerar o som como uma constante lembrança de que há mais coisas a acontecer do que aquelas que estamos a ver. Completa a percepção da imagem, que é muito fragmentada, e funciona para aprofundar a noção da maquinaria do campo e daquele inferno.
Ouvimos diferentes línguas no filme. Pode explicar melhor o papel da linguagem no filme?
Percebemos que a linguagem neste inferno poderá ser o único lar que as pessoas poderiam ter. Para além disso, devido ao Holocausto, foi criada uma nova língua, pois o iídiche alterou-se drasticamente, e isso foi algo que tentámos mostrar no filme. Nas pequenas frases que as pessoas proferem queríamos mostrar esta diferença na língua e recuperar essa memória da fala, e dessa forma ressuscitar para este filme um mundo já morto, se assim o podemos dizer.
Como foi o trabalho com os actores nesse aspecto?
Trabalhámos muito na linguagem corporal deles, nos regulamentos dos campos e no que eles tinham que fazer para sobreviver e como isso tinha impacto nos seus movimentos corporais. Por exemplo, nunca se devia olhar nos olhos um guarda da SS, devia-se sempre tirar o chapéu quando se cumprimentava, e falar muito lentamente enquanto se andava. Outro desafio fulcral para os actores foi que eles tinham de mostrar apenas um reduzido leque de emoções, pois já viviam em Auschwitz há algum tempo e por isso estavam com uma capacidade mental muito reduzida e um estado de espírito muito em baixo. Visto isto, queria que o protagonista representasse com uma abordagem muito minimalista e que fosse o mais desligado possível a nível emocional. Os actores deste filme não podiam colocar nas personagens as suas emoções pós-guerra. Tive de lutar com todos eles, na esperança de conseguir que no filme se considerassem como apenas simples trabalhadores de uma fábrica.
Já trabalhou como assistente de Béla Tarr. Qual foi a influência dele nas suas escolhas para este filme a nível de estilo?
Béla Tarr foi a minha escola. Ele ensinou-me as coisas essenciais para me tornar um cineasta, mas para além disso não há mais nenhuma relação. Ele ficava nervoso quando eu falava com ele, por isso há oito anos que não falo com Béla.
Trabalhar um tema como o Holocausto não é apenas uma questão de escolha artística e estética. Enquanto cineasta, precisa de tomar uma posição moral a esse respeito. Que decisão tomou quanto a isto?
Se queremos mostrar demasiado podemos acabar com menos, mas por outro lado, se mostrarmos de menos então reduzimos o impacto do horror do Holocausto. A questão moral é, assim, como equilibrar estes dois termos. Ao abordarmos esta questão, tentámos estimular a imaginação do espectador. Como já expliquei, estávamos focados num homem, e apenas num homem. E quando estávamos a prestar atenção a ele não estávamos a prestar atenção ao fundo, ao que se passava à volta, ao que estava a acontecer aos deportados, aos guardas, aos mortos, porque de certa forma já nos tínhamos habituado a eles.
Devido a esta estratégia, o fundo e a imaginação sobre ele tornam-se muito importantes para os espectadores. O espectador sabe que está a olhar para uma fábrica de morte e vê alguns fragmentos dela, o que exige que ele imagine coisas. Penso que este poder da imaginação é muito importante a nível moral, porque não podemos recriar o horror, apenas podemos sugeri-lo. E não queríamos que o espectador ficasse em cima do horror porque ele não é compreensível e perceptível enquanto um todo uno, na realidade do Holocausto não existe um ponto de vista de Deus. Mas se recuperarmos isso para o nível humano e mostrarmos um pouco, então isso pode dar aos espectadores uma muito maior percepção do horror no seu verdadeiro sentido. Foi isso que quisemos sublinhar. Afinal, este filme não é sobre a sobrevivência física mas sim sobre a sobrevivência interna.
O que quer dizer com sobrevivência interna?
O que acontece quando já não existe mais esperança? É possível existir uma voz que se acenda cá dentro e de alguma forma nos diga o que temos de fazer? Essa é questão central, saber se temos ou não uma escolha cá dentro. Estes são, creio, os pensamentos centrais do filme, pelo menos na minha perspectiva. O que normalmente na vida real definimos como loucura não tem qualquer significado em Auschwitz. Era uma grelha de coordenadas totalmente diferentes. Então, o que é a loucura? O que estava a acontecer em Auschwitz era real, mas emocionalmente absurdo. A loucura de Saul é a característica humana mais importante, é a sua forma de revolta. Saul está na sua busca pessoal, está a dar sentido e significado à sua forma pessoal de resistência. Face a uma situação em que não existe possibilidade de esperança, a voz interior de Saul ordena-lhe que ele deve sobreviver, ser capaz de fazer algo que tenha significado.
Já mencionou publicamente que membros da sua família foram mortos em Auschwitz. Quão perto está desse drama?
Os meus bisavós do lado materno foram mortos e a minha avó teve de fugir do gueto. Escapou para o Leste da Hungria, que agora pertence à Ucrânia. Antes da guerra havia lá uma vibrante comunidade judaica. Foi destruída. Do lado do meu pai, tiveram de se esconder. Era serem mortos, ou deportados, ou esconderem-se. Na realidade ninguém regressou.
Como é que consegue manter o equilíbrio enquanto mergulha neste material?
Faz parte da minha vida. Aprende-se a viver com isto. Sempre tive um sentimento de não ser capaz de compreender e de estar com raiva. Tem sido sempre esse o sentimento principal. Mas aprendemos a viver com isso. É algo muito longínquo e ao mesmo tempo muito próximo. E não é só a mim que acontece. Os traumas mantêm-se na família, e na população em geral também.
O que é que o cinema consegue alcançar acerca deste tema que outros meios não conseguem?
Consegue funcionar ao nível da percepção e efectivamente comunicar com os sentidos e não necessariamente com a parte intelectual da psique. Pode oferecer muito mais do que apenas algo para o intelecto e isso, creio, é a grande vantagem do cinema.