O melómano e a fisionomia da música

Breves Notas sobre Música, de Gonçalo M. Tavares, é um passeio especulativo pela floresta cifrada da música. O exercício da imaginação e da inventividade de um escritor embrenhado nos domínios de uma arte alheia que se faz próxima.

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Gonçalo M. Tavares propõe a “Música capaz de interferir na matéria”

Breves Notas sobre Música integra o âmbito das comemorações dos 50 anos da Orquestra Gulbenkian (originalmente, Orquestra de Câmara Gulbenkian). Alguns destes fragmentos foram precisamente publicados nos programas daquela formação musical (tendo outros sido redigidos em momento posterior). O ponto de vista de Gonçalo M. Tavares é, claramente, o do melómano, e o de quem contacta com o fenómeno musical como alguém que lhe é exterior. O seu estatuto volta, portanto, a ser o do não especialista, como já o fora em livros como Breves Notas sobre Ciência (Relógio D’Água, 2006), ou Breves Notas sobre o Medo (Relógio D’Água, 2007). De resto, o próprio título reforça a integração numa (informal) série comum. Neste caso, o autor é um observador de dados auditivos. Essa condição paradoxal repercute-se nestas meditações especulativas, no carácter deliberadamente não sistemático, e antes marcado pela inventividade e a especulação. Além de que a sua posição exterior à órbita dos estudos especializados, ou vincadamente teoréticos, fornece uma liberdade suplementar à sua prática de escrita. Segundo Gonçalo M. Tavares, ter-se-á tratado, sobretudo, de tentar “olhar a música como a causa, uma causa potentíssima mas quase enigmática, e a partir daí tentar perceber os seus estilhaços mais material”.

As incursões de G. M. Tavares (GMT) no território musical prolongam uma linhagem ilustre, que mergulha as suas raízes na mais recuada Antiguidade. Em dois testemunhos se refere Heraclito ao simpósio conflituoso dos sentidos: “Más testemunhas são, para os homens, os olhos e os ouvidos, que possuem almas bárbaras.”; mas, sobretudo, disse o de Éfeso: “Mais exacto é o testemunho dos olhos que o dos ouvidos.” O primeiro texto recolhido em Breves Notas sobre Música instala no seio destas reflexões essa relação crítica (mas proveitosa, para os textos e para as suas consequências) entre os diferentes sentidos – “Pensar em provadores de música semelhantes aos provadores de vinho.” Todo o livro mantém, de resto, a rota dessa articulação tensa. Como, por exemplo, quando se avança com a proposição de uma “gula dos ouvidos”. O debate entre aquilo que Hegel designou por sentidos práticos (olfacto, paladar e tacto) e teóricos (audição e visão) conduz também, por outro lado, a fórmulas de síntese, como a que consiste na noção da música como uma “luz auricular”.

Na mesma linha de trabalhos anteriores, GMT concebe conexões veementes e ambiciosas entre o corpo e o tema por si eleito – “Ouvir é uma forma subtil de virar o nosso corpo para um lado.” O corpo será mesmo apresentado como a “ampliação do ouvido”. Uma fantasia anatómica com uma dimensão que suplanta o plano unicamente da metáfora. Pensando num livro pertencente à mesma “série”, Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano) (Relógio D’Água, 2009), pode evocar-se o momento em que, reflectindo sobre Maria Gabriela Llansol, Gonçalo M. Tavares propõe a seguinte formulação: “Ler como forma de exercício físico, ler como modalidade desportiva”. Ou, na mesma obra, mas partindo de Maria Filomena Molder: “O poema é uma substância que remete para as surpresas da física.” Em Breves Notas sobre Música, o autor reata o seu interesse pela pesquisa que se enlaça na prática da ciência. Algo que se torna sobremaneira premente quando se quebram as linhas das associações mais imediatas, e se suspendem as análises mais associativas. para interrogar em pleno espírito fantasioso: “Existirá, em suma, na música algo semelhante ao H2O?”

Estes textos de Gonçalo M. Tavares apresemtam afinidades mais estreitas – e, porventura, mais interessantes – com o espírito vagueante e especulativo dos românticos alemães do que, por hipótese, com qualquer pretensão de cientificidade de um tipo mais contemporâneo. Porque não é esse o círculo em que o autor pretende mover-se. E, de facto, ele dirige os seus esforços de escrita rumo a exercícios de imaginação controlados pela permanência da escrita no campo de forças da disciplina musical. “Se quisermos retomar a comparação entre a Música e a Pintura”, escreveu E.T.A. Hoffmann, “a composição surgirá no espírito do artista como um quadro completo”, uma aproximação de disciplinas artísticas que G. M. Tavares parece recapitular, quando teoriza: “A música, ela mesma, é uma mancha sonora, uma forma ritmada de ocupar o espaço auditivo”. E onde Novalis via na música “muita semelhança com a álgebra”, sugere Gonçalo M. Tavares o princípio de “matemática sonora”. E postula: “A matemática não é para ser cantada, mas podemos imaginar uma orquestra em que cada um dos seus elementos desenvolva equações.” O que é não apenas um gesto de divagação, mas também uma asserção que, sem franquear os limites do rigor científico, se aproxima da fórmula científica e da sua atitude de proposta afirmativa e gosto pelo risco. Em Breves Notas sobre Ciência já Gonçalo M. Tavares descrevia, através de uma imagem particularmente dinâmica e incisiva, esse rigor e a assunção do perigo de enfrentar o desconhecido: “pegas no alvo com as tuas duas mãos e atiras o seu centro contra a lâmina da flecha. Eis a exactidão científica”. O carácter englobante e totalizador da música (à maneira de Wagner) leva o autor a percorrer, numa diversificada declinação, o perfil daquele que ouve música, estabelecendo-lhe distintas encarnações, como o “melómeno-fisionomista”, o “ouvinte-médico” (variação do “clínico-ouvinte”), “ouvinte-geómetra”, ou o “melómeno obsessivo”, no domínio do qual lemos do “Homem como aquela coisas que está no meio dos ouvidos” e como “aquilo que existe para ouvir”.

Se Nietzsche falava de uma “música que intercede”, Gonçalo M. Tavares propõe a “Música capaz de interferir na matéria”. Porque para o autor de O Atlas do Corpo e da Imaginação interessa perceber nesta arte um instrumento para, como diria Mário de Sá-Carneiro, “mexer na vida” – “a música é “um dos meios de mais rapidamente alvoroçar a fisiologia humana”.

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