Por causa do Zika, o Brasil debate o aborto
Num país que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez na maior parte das circunstâncias, um grupo de activistas pretende defender o direito ao aborto legal para mulheres grávidas diagnosticadas com Zika.
Nenhuma brasileira engravida neste momento porque quer. “Uma mulher, hoje, está tentando adiar a gravidez”, garante o ginecologista Olímpio Moraes Filho, director do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, a segunda maior maternidade de Pernambuco, estado no Nordeste brasileiro que regista o maior número de recém-nascidos com microcefalia desde que a epidemia do Zika se propagou pelo país.
Existem actualmente 508 casos confirmados de microcefalia num país que, em média, não costumava contabilizar mais do que 150 casos por ano.
Apesar de a relação entre o vírus do Zika e a microcefalia ainda não estar cientificamente comprovada de forma definitiva ou inequívoca, o súbito aumento de bebés com crânios abaixo da média está a confrontar o Brasil com uma geração de crianças com deficiências.
Mulheres grávidas ou em idade fértil estão assustadas com o espectro de contraírem Zika e de terem filhos com malformações. “As pessoas estão literalmente em pânico”, diz Maria Helena Falcão, ginecologista com clínica privada no Rio de Janeiro. Tornou-se habitual as pacientes ligarem sempre que têm qualquer febre ou mancha na pele, temendo ser um sintoma de Zika. “Eu acordo falando de Zika e vou dormir falando de Zika”, conta a médica.
Recentemente, três médicos relataram à Folha de S. Paulo que pacientes suas infectadas com o vírus durante a gravidez decidiram abortar clandestinamente mesmo antes de saberem se o feto tinha microcefalia ou não.
A crise do Zika teve um efeito inesperado: reacendeu o debate sobre a legalização do aborto num país que tem uma legislação que data de 1940 e que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez na maior parte das circunstâncias. Um grupo de activistas está a preparar uma acção para apresentar no Supremo Tribunal Federal (STF) defendendo o direito ao aborto legal para mulheres grávidas diagnosticadas com Zika. “A nossa tese é que a autorização para o aborto precisa de ser garantida a partir da confirmação da infecção, como um direito da mulher face a uma grave epidemia não controlada pelo Estado brasileiro”, diz Débora Diniz, antropóloga e professora da Faculdade de Direito na Universidade de Brasília, mentora da acção que deverá ser entregue no prazo máximo de dois meses. Segundo ela, a reacção do Governo brasileiro “foi tardia” e “as políticas sanitárias para eliminação do mosquito Aedes aegypti [responsável pela transmissão do vírus] apenas se intensificaram depois de a epidemia de Zika já estar instalada no país”.
O Código Penal brasileiro apenas permite o aborto em caso de violação e quando a vida da mãe está em risco. Em 2012, Débora Diniz e o seu grupo conseguiram que a maioria dos juízes do STF autorizasse a interrupção voluntária da gravidez nos casos em que o feto tem anencefalia (ausência parcial do cérebro). “O precedente é importante, porque já permitiu a discussão sobre interrupção da gravidez dentro do STF”, nota Débora Diniz. Mas reconhece que “as duas acções são muito distintas”. Nos casos de anencefalia, o argumento que vingou é que o feto não teria chances de sobreviver fora do útero. Alguns juízes de tribunais de menor instância também têm autorizado abortos, de forma isolada, diante de outras malformações que comprometem a vida do bebé.
“Noutras malformações, que a gente sabe que o bebé vai morrer, só mediante autorização judicial”, resume Olímpio Moraes Filho. “O médico faz um laudo, dá toda a literatura. E a gente tem conseguido resultados satisfatórios.”
“Mas na microcefalia não se construiu essa literatura, não se sabe dizer qual é a chance de morte para um juiz”, diz o ginecologista. “É tudo muito novo, a gente não tem dados evidentes para dizer à população científica: ‘Esse bebé com microcefalia vai viver um dia, uma semana, anos.’ Não houve uma construção de classificação.”
“O termo que está sendo usado, microcefalia, é completamente inadequado”, diz o ginecologista e obstetra Thomaz Gollop, com clínica em São Paulo. “A microcefalia é apenas um dos sinais dos bebés com Zika congénito. Tem um grande comprometimento do cérebro, existem calcificações intracranianas, lesões oculares e auditivas.”
“Estamos diante de um quadro de múltiplas deformações que, se não são incompatíveis com a vida, são incompatíveis com qualquer qualidade de vida”, defende a socióloga Jacqueline Pitanguy, que recentemente assinou um texto de opinião no jornal O Globo advogando o direito ao aborto diante da crise de microcefalia presumivelmente ocasionada pelo Zika.
O diagnóstico de microcefalia é tardio: só costuma ser detectado com uma ultra-sonografia no final do sexto mês de gravidez. “O direito ao aborto não deve depender do diagnóstico”, diz Jacqueline Pitanguy. “Se a mulher teve Zika até à 12.ª semana, deveria ter direito ao aborto sem maiores complicações. Como acontece na maior parte dos países.”
“Seria um aborto preventivo, na expectativa de que pudesse nascer uma criança deficiente. Abriria espaço para uma grande quantidade de abortos”, diz Lenise Garcia, presidente da organização Brasil sem Aborto.
Referendo, não
Os defensores da descriminalização consideram que o STF é a melhor via para obter uma ampliação do aborto legal no país. “O legislativo não é muito fácil. O Congresso está muito dominado por uma bancada evangélica que politiza a religião, e tem alianças espúrias com a ‘bancada da bala’ [composta por antigos agentes policiais e militares]. Basta dizer que o presidente da Câmara dos Deputados é o Eduardo Cunha. Que, quando assumiu o cargo, disse que o aborto só seria legalizado por cima do seu cadáver”, diz Jacqueline Pitanguy.
Cunha é autor de um projecto de lei que visa endurecer ainda mais a actual legislação; entre outras coisas, ele determina que as vítimas de violação só poderão fazer um aborto legal depois de apresentarem queixa à polícia e de se submeterem a um exame médico. Foi esse projecto de lei que fez milhares de mulheres, na sua maioria jovens, saírem para rua no Rio e em São Paulo nos últimos meses de 2015 em protesto contra o presidente da Câmara dos Deputados.
“O que poucos brasileiros sabem é que a lei brasileira pune aborto com cadeia”, diz Thomaz Gollop, professor de genética médica na Universidade de São Paulo. “Eu dei aulas ontem de manhã numa Faculdade de Medicina numa região rica de São Paulo e perguntei, numa turma de enfermeiras, médicos, psicólogos e assistentes sociais, se sabiam como a lei brasileira pune o aborto. Ninguém sabia que a lei pune com um a três anos de prisão. Quando perguntei se alguém achava que a mulher devia ir para a cadeia, uma mulher levantou a mão e disse que sim.”
Segundo o médico, “a desinformação é enorme e não se discute o tema com a população”. É por esse motivo que um referendo sobre o aborto, “como o que aconteceu em Portugal”, seria uma perda de tempo.
“As forças progressistas vão perder e sabem disso. Não temos uma estrutura montada num país tão grande. É a diferença entre Brasil e Portugal. Uma consulta popular vai ser influenciada pelo enorme poder da Igreja Católica e também das igrejas evangélicas. Essas igrejas têm canais de TV onde têm condições de influir na opinião de milhares de pessoas num curto espaço de tempo.”
Segundo uma sondagem Datafolha divulgada em Dezembro do ano passado, 67% dos brasileiros são favoráveis à manutenção da lei. Outros 16% acreditam que o aborto deve ser permitido noutros casos além dos que estão previstos na legislação e 11% acreditam que a prática deveria deixar de ser crime em qualquer ocasião.
“A sinalização do governo federal é que ninguém vai mexer na lei”, diz Lena Lavinas, professora no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As únicas declarações do ministro da Saúde, Marcelo Castro, foram para defender a lei. “A posição do Ministério da Saúde é inequívoca, é a posição em defesa da lei. A legislação brasileira só permite aborto em três situações, que não inclui essa daí”, afirmou há uma semana, referindo-se à microcefalia.
Na sua primeira campanha presidencial, em 2010, depois de perder a primeira volta das eleições, Dilma Rousseff assinou uma declaração pública em que afirmava ser pessoalmente contra o aborto e em que se comprometia a não fazer alterações à lei caso viesse a ser eleita.
“O problema é que temos uma mulher na Presidência do Brasil que abandonou todas as reivindicações do movimento de mulheres de uma maneira geral. Desde o primeiro mandato, ela proíbe os seus ministros de sequer falar na palavra aborto”, diz Thomaz Gollop.
“O comportamento da Presidente é uma total frustração para as mulheres”, aponta Lena Lavinas.
“É típico do Brasil”
Na prática, são as mulheres mais pobres – e frequentemente negras – que ficam mais vulneráveis em função da legislação vigente. Em Setembro de 2014, duas mulheres morreram no Rio de Janeiro depois de tentarem fazer abortos em clínicas clandestinas.
“Mulheres de classe média-alta sempre fizeram abortos e fizeram em condições de segurança porque puderam pagar”, nota Jacqueline Pitanguy. “São as mais pobres que caem nas mãos dos chamados aborteiros.” O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil.
“O aborto tem de deixar de ser criminoso. Primeiro, porque essa lei não é eficaz, felizmente é raríssimo uma mulher ser encaminhada para a cadeia”, diz Thomaz Gollop. “É típico do Brasil: é uma coisa feita para todo o mundo ver, mas não funciona para nada. Satisfaz as igrejas e dá votos, mas não resolve o problema da população carente.”
“Se as mulheres e as filhas dos deputados estivessem morrendo na mão de aborteiros, a coisa seria diferente”, acusa Jacqueline Pitanguy.
Para Débora Diniz, a epidemia de Zika “só evidenciou a crueldade da criminalização do aborto no país”. Como a elevada incidência do vírus no Nordeste do Brasil evidencia, as mulheres mais pobres são as mais atingidas; vivendo em regiões periféricas sem acesso a água canalizada, nem saneamento básico, não têm outra opção senão acumular água em reservatórios, o que propicia a proliferação do mosquito transmissor da doença. Segundo a imprensa brasileira, um grupo crescente de mães de recém-nascidos com microcefalia foram abandonadas pelos pais das crianças e têm de criar os filhos sozinhas.
“É triste, mas essa epidemia abre uma janela de oportunidade para que o debate sobre o aborto saia do gueto, não seja feito pelas mesmas vozes de sempre – feministas, igrejas –, mas outros sectores da sociedade – médicos, associações de juízes, opinion makers... Isso está acontecendo”, diz Jacqueline Pitanguy.
Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto, uma organização multidisciplinar que defende a interrupção voluntária da gravidez como uma questão de saúde pública, não está tão optimista.
“É muito difícil ter essa posição no Brasil, sendo médico. Muitos médicos são preconceituosos e confundem você ser parceiro da mulher e ser pró-escolha com ser alguém que faz aborto criminoso. São coisas completamente diferentes. Digo aos meus alunos: 'Se eu vivesse de aborto clandestino, jamais quereria que a lei mudasse. Porque estaria dando tiro no meu próprio pé'”, nota. “A reflexão no Brasil sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos, incluindo a questão do aborto, é muito pobre, mesmo entre médicos”, conclui o ginecologista e obstetra.