Morreu Harper Lee, a autora de Mataram a Cotovia
Harper Lee vivia uma velhice discreta num lar de Monroeville, a sua terra natal, mas voltara à ribalta em 2015 com a descoberta e a publicação de Vai e Põe Uma Sentinela.
A romancista Harper Lee, autora de um livro que se tornaria quase instantaneamente um clássico da literatura americana, To Kill a Mockingbird (Mataram a Cotovia na mais recente edição da Relógio D’Água), publicado em 1960, morreu esta sexta-feira na sua terra natal, Monroeville, no Alabama, onde vivia num lar desde que sofrera, em 2007, um acidente vascular cerebral.
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Extremamente reservada – as suas aparições públicas eram raras e não dava entrevistas desde os anos 60 –, Harper Lee voltara às páginas dos jornais em 2015 com a notícia de que fora descoberto o manuscrito de uma alegada sequela de Mataram a Cotovia, que viria a ser publicada nesse mesmo ano com o título Go Set a Watchman (Vai e Põe Uma Sentinela, na edição da Presença). Apresentado como uma continuação do romance de 1960, mas escrito antes, o livro retoma boa parte das personagens de Mataram a Cotovia, mas o enredo passa-se 20 anos depois.<_o3a_p>
Nem o acordo da autora quanto à publicação de Vai e Põe Uma Sentinela, nem o exacto estatuto desse livro estão ainda cabalmente esclarecidos, mas parece provável que o manuscrito fosse apenas uma versão inicial de Mataram a Cotovia, e não um verdadeiro (e deveras tardio) segundo livro, que excluiria Harper Lee desse escasso número de escritores célebres que escreveram um único livro, entre os quais se contam a Emily Brontë de O Monte dos Vendavais ou a Margaret Mitchell de E Tudo o Vento Levou.<_o3a_p>
Nelle Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 em Monroeville, uma pequena cidade de 6.500 habitantes, onde se tornaria, na infância, a melhor amiga de um rapaz que para ali fora morar aos quatro anos, após o divórcio dos pais, e que o mundo viria a conhecer como Truman Capote. É Lee quem servirá de inspiração a Capote para a Idabel do seu romance de estreia, Outras Vozes, Outros Lugares. E Capote, por seu turno, transformar-se-á no pequeno Dill, o vizinho e amigo da protagonista de Mataram a Cotovia.<_o3a_p>
Nelle, nome que lhe foi dado pelo insólito motivo de ser o nome de uma avó, Ellen, escrito ao contrário, era a mais nova de quatro irmãs, filhas de um advogado, Amasa Coleman Lee, que no início da sua carreira defendera dois negros acusados de terem morto um comerciante branco (acabariam ambos enforcados).<_o3a_p>
É tido como certo que Harper Lee se inspirou pelo menos parcialmente no seu pai para compor o Atticus Finch de Mataram a Cotovia, o advogado, viúvo, que mora numa pequena terra do Sul dos Estados Unidos, nos anos 30, e que ensina os seus dois filhos – a narradora do livro, Jean Louise, vulgo “Scout”, e o seu irmão Jem – a não se deixarem influenciar pelo preconceito, e que não hesitará em afrontar ele próprio o racismo dos amigos e vizinhos ao aceitar defender um jovem negro acusado de violar uma rapariga branca.
Um presente de Natal
Mataram a Cotovia, que ganhou o prémio Pulitzer em 1961, vendeu até hoje mais de 30 milhões de exemplares, está traduzido em mais de 40 línguas, e foi adaptado ao cinema logo em 1962, num excelente filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck no papel do advogado, interpretação que lhe valeu um Óscar. A própria Lee dirá que achou o filme “uma das melhores adaptações de um livro alguma vez feitas”.
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Harper Lee começara a interessar-se por literatura ainda no liceu de Monroe. Terminados os estudos liceais, frequentou durante vários anos a Universidade de Alabama, estudando Direito, mas, quando estava prestes a concluir a licenciatura, decidiu partir para Nova Iorque e tentar uma carreira literária. Arranjou emprego como escriturária, tratando de reservas em companhias de aviação, e ia escrevendo nos tempos livres.<_o3a_p>
Em 1959, a escritora acompanhou o seu amigo Truman Capote ao Kansas, como sua assistente na investigação que viria a dar origem a In Cold Blood (A Sangue Frio), o livro em que Capote relata o brutal homicídio de uma família, e que só viria a ser publicado em 1966, quando Harper Lee era já uma estrela literária, depois do sucesso instantâneo do seu romance de estreia. Esta fase do relacionamento entre ambos é descrita no filme Capote, de Bennett Miller, com Philip Seymour Hoffman no papel do romancista e Catherine Keener no de Harper Lee.<_o3a_p>
É ao seu amigo de infância que Lee deve o conhecimento do músico, escritor e produtor teatral Michael Brown e da mulher deste, Joy, que no final de 1956 lhe deram um extraordinário presente de Natal: o dinheiro correspondente a um ano de salários, com um bilhete que dizia: “Tens um ano livre para escreveres o que te apetecer. Feliz Natal”. Lee conta a história em 1961, mas o nome dos seus beneméritos só viria a ser revelado décadas mais tarde. Não há dúvida de que a autora usou bem o tempo que lhe foi concedido, escrevendo Mataram a Cotovia, ou talvez Vai e Põe Uma Sentinela, aceitando que se trata da primeira versão do romance.
Brilho em cada linha<_o3a_p>
Em 1957, Lee entregou o manuscrito a vários editoras, incluindo a então J. B. Lippincott Company, que comprou os direitos. A editora da Lippincott que tratou do livro, Therese Hohoff,contará mais tarde que “a centelha do verdadeiro escritor brilhava em cada linha”, mas que o manuscrito era mais “um conjunto de episódios” do que “um romance plenamente estruturado”. Durante três anos, a autora escreverá versões sucessivas, até chegar ao livro que milhões de pessoas irão ler nas décadas seguintes.<_o3a_p>
Lee escrevia desde muito nova e já tinha publicado várias histórias em revistas quando saiu Mataram a Cotovia, mas a notoriedade que lhe trouxe o seu livro de estreia parece tê-la bloqueado. Em 1964, quando ainda dava entrevistas, garante que não esperou ter “qualquer tipo de sucesso” com Mataram a Cotovia e confessa que está a ter dificuldades em avançar com um segundo romance. Ainda escreveu alguns ensaios nos anos 60, mas o segundo livro, se como tal pode ser considerado, só surgiria 55 anos mais tarde, em 2015.<_o3a_p>
Terá havido, de facto, uma tentativa de segundo romance que ficou pelo caminho, e Lee trabalharia ainda num projecto ao estilo de A Sangue Frio, sobre um assassino em série do Alabama, que também acabou por pôr de lado.<_o3a_p>
Retirando-se da vida pública, acabará por regressar a Monroeville para tratar da sua irmã mais velha, Alice, que adoecera e que viria a morrer em 2014. Ela própria sofreria um acidente vascular cerebral em 2007, do qual terá conseguido recuperar razoavelmente, e vivia desde então num lar de idosos.<_o3a_p>
Em Novembro de 2007, o presidente George W. Bush atribuiu-lhe a Medalha da Liberdade, a mais alta distinção civil nos Estados Unidos, e em 2010 o seu sucessor, Barack Obama, deu-lhe a Medalha Nacional das Artes, destinada a assinalar “contribuições extraordinárias” no domínio das artes.<_o3a_p>
A controvérsia em torno da publicação de Vai e Põe Uma Sentinela trouxe para as páginas dos jornais muitas notícias contraditórias sobre o seu estado de saúde, com testemunhos de que estaria bem e lúcida a contrastarem com relatos de que estaria quase cega e surda e sofreria de demência.
"Um farol de integridade"
As reacções à morte de Harper Lee não se fizeram esperar. “O mundo perdeu uma mente brilhante e uma grande escritora”, disse, citada pela BBC, Spencer Madrie, proprietária da Ol' Curiosities and Book Shoppe, uma pequena livraria independente de Monroeville, destacando “as verdades que Harper Lee deu ao mundo, provavelmente antes de o mundo estar preparado para elas”. “Estamos agradecidos por termos tido uma ligação a uma autora que ofereceu tanto. Faltará sempre alguma coisa em Monroeville e no mundo em geral na ausência de Harper Lee.”
Em comunicado, o agente da autora, Andrew Nurnberg, escreveu que o mundo perdeu “um farol de integridade”. “Ter conhecido a Nelle nestes últimos anos não foi só um prazer absoluto, mas também um privilégio extraordinário”, acrescentou ainda, contando ter estado com Lee há seis semanas. “Estava cheia de vida”, recordou, destacando a mente e a inteligência afiada da escritora, que citou então Thomas Moore.
No Twitter, multiplicam-se as homenagens à escritora. “Descanse em paz, Harper Lee. A única coisa que não se submete à regra da maioria é a consciência de uma pessoa”, escreveu no Twitter o CEO da Apple, Tim Cook, citando uma conhecida frase da obra de Lee.
Com Cláudia Lima Carvalho