Spike Lee rapa: sem paz não há sexo
Chi-raq passou em Berlim fora de concurso e é um regresso à melhor forma incendiária do autor de Não Dês Bronca: um panfleto que torna visíveis as linhas de ruptura da sociedade americana, uma "ópera rap" delirante, interveniente, mal disposta, política.
Berlim! É cinema político que querem? Marimbem-se nas boas intenções e na sisudez! Rendam-se aos encantos cool, black is beautiful, de Lysistrata e das suas manas do South Side de Chicago! Façam barulho! Façam muito barulho! Braços no ar para Spike Lee e Chi-raq (fora de competição), a mais recente bomba de fragmentação atirada sem problemas de consciência pelo autor de Não Dês Bronca para o coração da América branca anglo-saxónica protestante. Mais #BlackLivesMatter é impossível: Chi-raq abre com um mapa da América inteiramente desenhado com armas de fogo, segue com números (o número de assassínios em Chicago entre 2001 e 2015 foi superior ao número combinado de soldados americanos mortos no Iraque e no Afeganistão – daí a alcunha de Chi-raq, combinando Chicago e Iraque), e segue para bingo com o refrão em tom de gangsta rap "please pray 4 my city" - rezem pela minha cidade. Sim, Spike Lee está mal-disposto (quando não está ele mal-disposto, na verdade?), mas lá por estar passado não quer dizer que não possa fazer a festa. E Chi-raq pode ser um panfleto que torna visíveis as linhas de ruptura da sociedade americana, assumidíssimo, e é também uma festa de bairro a meio caminho entre sermão rap e paródia de blaxploitation.
A verdade, mesmo, é que não fazemos a mínima ideia do que raio é Chi-raq, e ainda bem. Lee pega na comédia grega de Aristófanes Lisístrata, sobre a mulher que organiza uma greve ao sexo enquanto os homens não acabarem com a Guerra do Peloponeso, e transplanta-a para uma guerra de gangues no sul negro de Chicago entre os Spartans e os Trojans, com uma espantosa Teyonah Parris no papel desta Lysistrata, moça "tão dura como Coffy e mais sexy que Foxy Brown", autora do mote imortal "no peace, no pussy" ("sem paz não há pachacha" em tradução livre). Atira-lhe para cima as tradições orais da diáspora negra (o filme é inteiramente falado em verso rap) e da luta pelos direitos civis, salta do discurso político inflamado para a farsa mais xunga pelo meio de uma estrutura de musical com coreografias que forçam o limite do erótico – e Samuel L. Jackson como um mestre de cerimónias impagável.
No papel, nada disto faz o mínimo sentido junto, parece uma salganhada indescritível que não pode resultar. No écrã, é uma celebração imparável, autenticamente uma Spike Lee Joint (como sempre chamou aos filmes), com o cineasta americano a fazer o filme que quer, a marimbar-se para o que os outros pensam e a curtir que nem um castor. E esse gozo transmite-se ao público. Enfim, a algum público – é verdade que Chi-raq é demasiado "americano", sobretudo demasiado "afro-americano" para viajar, mesmo referindo-se directamente a todas as mortes de afro-americanos que têm feito as manchetes mundiais nos últimos meses. Mas isso é um pormenor, porque este é um dos filmes mais vivos e vitais que vemos em muito tempo – e, certamente, o mais vital que passou pela selecção oficial de Berlim este ano (inexplicavelmente fora de concurso).
Excessivo, sim, lúbrico, quase porno-chanchada que fala de coisas muito sérias com muitas gargalhadas. Longe de perfeito (percebe-se que o orçamento não foi grande), mas a perfeição não interessa quando é a energia tresloucada, urgente, com que Lee encena esta autêntica "ópera rap" delirante, interveniente, mal disposta, política. Porque, sim, Chi-raq é um filme político, e a prova de que é possível fazer um filme político com um groove que nunca mais acaba. Mais que tudo o resto, Chi-raq é uma festa aberta a todos.