Hoje existe nos principais meios de comunicação social um discurso hegemónico insinuante, praticamente sem contraditório, atravessando várias das dimensões da nossa vida em comum. A ideia de que não há alternativas; de que somos em exclusivo responsáveis pelo nosso sucesso ou fracasso; de que basta mudar estilos de vida pessoais para salvar o planeta; de que os pobres precisam de caridade (e não de empoderamento) mas são preguiçosos — enfim, uma constelação espessa mas pegajosa, que se agarra à pele como lama atirada pelos cães de guarda de serviço.
Talvez por isso, pela mediocridade do senso comum conservador instalado massivamente nas televisões, rádios e jornais, me tenha sentido tão estimulado pelo recente filme "Spotlight", que aborda uma investigação jornalística de grande fôlego sobre as práticas instaladas de pedofilia e abuso sexual na Igreja Católica de Boston. Percebe-se pela narrativa como é fundamental, para um jornalismo que se pretenda crítico e desocultador dos intrincados mecanismos através dos quais o poder se torna opaco, para melhor se perpetuar, possuir tempo, dinheiro e caráter. Só esses três ingredientes, cumulativamente articulados, permitem desacelerar, criar agendas e ritmos de investigação que não se compadecem com a espuma dos dias e a vertigem da lógica de telenovela noticiosa em que a nossa produção noticiosa está atolada.
"Spotligth" era a equipa de investigação do "The Boston Globe", composta por quatro jornalistas a tempo inteiro, instalações autónomas e recatadas dentro do jornal, um orçamento e uma linha editorial que lhe permitia pesquisar com afinco, rigor e minúcia, demorasse o tempo que demorasse. Quando esses fatores se conjugaram com a entrada em cena de um novo diretor, estranho às lógicas de cooptação da burguesia local, foi possível começar a juntar as peças do puzzle que provaram como os casos de abuso sexual na Igreja Católica eram endémicos e sistémicos, encobertos por uma rede social conivente, não sendo um mero epifenómeno isolado. Aos jornalistas interessou-lhes, como fio orientador, desmascarar a lógica de funcionamento da instituição, sem destacarem ingénua e precipitadamente o que poderia ser a anedota, o burlesco ou o horrível. Isso viria por acréscimo, pois de nada serviria o escândalo se não tocasse no nervo do poder. No final do filme, quando no écran desfila uma lista enorme de locais onde deflagraram escândalos análogos, torna-se impossível não nos questionarmos sobre as razões por que em Portugal tão pouco se continua a saber sobre o assunto!
Ora, em tempos em que a concentração dos media aumenta vertiginosamente, em que a transferência para o online e o chamado “jornalismo cidadão” (que parece responder ao nosso desejo de participação, rapidez e interatividade) tem sido acompanhado de uma alarmante quebra de receitas, de despedimentos em massa e de redações cada vez mais esvaziadas e condicionadas pela lógica hegemónica, preguiçosa e imediatista de produção de notícias, é a democracia, tal como a conhecemos (ou imaginamos…), que está em causa.
Para podermos decidir temos de conhecer tudo. E para conhecer temos de ver para além das fachadas oficiais e oficiosas. Sem jornalismo crítico, organizado e com recursos, respiraremos a ilusão de fazer do nosso vídeo caseiro a cobrir a inundação do vizinho ou o crime da paróquia o Alfa e Ómega da verdade. Os interesses instalados agradecem, aproveitam e os poderosos batem palmas de eterno gáudio.