Tarde livre. A chover. Entrei na sala de cinema a pensar que ia matar três horas com mais um filme do Tarantino. Apesar dos últimos não me terem cativado, é sempre uma escolha segura. Pelo menos, não ia ver xaropadas de amores estereotipo-românticos ou cenários de videojogos. Mas não. O que aconteceu foi que viajei numa montanha, durante uma tempestade de neve, e entrei numa estalagem americana que me abrigou. Sentei-me à lareira, peguei numa caneca de café, e conheci oito pessoas surpreendentes.
Isto costuma acontecer-me na literatura: fascinar-me com as personagens e levá-las comigo para a vida, como se de amigos se tratassem. Sempre que tenho um dilema moral, penso no Rodion, do "Crime e Castigo"; quando tinha colegas de turma que decoravam tudo e não percebiam nada, lembrava-me do Euzebiozinho, d´"Os Maias"; quando um amigo fica muito invejoso e tenta de todas as formas ser importante, sorrio a pensar no Ulrich, d´"O Homem Sem Qualidades"; ou, quando conheço alguém neurótico que tenta agradar toda a gente, lembro-me logo do rapaz da bandoleira cor de laranja, do "Rei Pálido".
Mas foi a primeira vez que me aconteceu no cinema. Vim embora com o Major Marquis Warren, um negro nada típico, muito pouco coitadinho (no filme, obriga um branco a fazer-lhe sexo oral — a cena mais violenta da história — quais jorramentos de sangue qual quê), que sofre a discriminação de uma forma tão imponente, que ridiculariza quem o discrimina; com John Ruth, o homem que enforca pessoas mas é sensível (dá boleia a dois desconhecidos, ganha afecto por Daisy, a condenada, e evita a morte de um odiado); com Daisy Domergue, a assassina assustadora que adora o irmão, e por isso destrói a ideia binária de mulher-boazinha ou mulher-serpente.
Aliás, não há qualquer carga erótica na personagem, o que demonstra bem a inteligência de Tarantino ao delinear mulheres a sério e não bonecas de plástico cinematográficas, como é habitual no cinema, especialmente no americano; com Chris Mannix, o imbecil aparvalhado que de burro não tem nada; com Bob, o mexicano (para além das dicotomias norte-sul, negro-branco, homem-mulher, a questão rácica mexicana também é abordada), que me pôs a rir às gargalhadas com a cena da entrada na estalagem, directo ao cobertor e à lareira, por causa do frio; com Oswaldo Mobray, o homem que tem muitas peneiras mas escrúpulos nenhuns; com Joe Gage, o discreto que faz as maiores atrocidades, sempre com um ar muito inocente; e com o general Sanford Smithers, o velho racista reaccionário que matou meio batalhão de negros na guerra civil mas que é muito sensível e inofensivo quando fala do filho.
Os "Oito Odiados" dão para rir, dão para pensar no estado dos E.U.A., no estado da política e da sociedade em geral, dissertar acerca do que é a justiça e a injustiça, apreciar a complexidade das pessoas, nas suas várias camadas, e entrar num mundo onde não há apenas bons ou maus, bonitos ou feios, pobres ou ricos. Não há nada disso no filme do Tarantino. Apenas personagens densas, boa música e uma belíssima fotografia. Apenas inteligência.