O pós-apocalipse segundo Salomé Lamas
Eldorado XXI, algures entre Herzog, Wang Bing e Mad Max, é o melhor filme da presença lusa no Festival de Berlim.
Com a primeira projecção pública de Eldorado XXI no Forum ao final da tarde de segunda-feira, depois de Hugo Vieira da Silva na sexta e Ivo Ferreira no domingo, fecham-se as estreias mundiais de longas portuguesas em Berlim 2016. (Há ainda Rio Corgo, de Maya Kosa e Sérgio da Costa, que tem a primeira sessão pública esta quarta, mas que já teve estreia mundial no DocLisboa.) E descobre-se também aquele que é, em nosso entender, o melhor filme da presença lusa no certame alemão – que, é verdade, tem muito em comum com as outras três longas na maneira como explora a paisagem e o local (Angola em Cartas da Guerra e Posto Avançado do Progresso, o "Portugal profundo" em Kosa e Costa, os Andes peruanos em Lamas). Em todos eles, o local onde tudo acontece não é um simples cenário ou um pano de fundo; é igualmente um motor formal e narrativo que ancora o filme e lhe dá uma plasticidade, uma razão de ser estética.
Em Eldorado XXI, no entanto, essa paisagem tem um papel particularmente importante e singular. A anterior longa de Salomé Lamas chamava-se Terra de Ninguém e recolhia o testemunho de um antigo comando português tornado mercenário, testemunho esse cuja veracidade não podia ser provada de modo fidedigno. O filme instalava-se então num limbo, numa "terra de ninguém" entre a realidade e a ficção.
Em Eldorado XXI, a dada altura essa mesma expressão é usada por um dos habitantes da aldeia remota nos Andes peruanos, a 5500 metros de altitude, onde Salomé Lamas foi rodar: La Rinconada, que vive da exploração de minerais (mas também dos seres humanos...) é uma terra de ninguém, já não só (mas também) entre a realidade e a ficção, mas sobretudo entre o remoto e o central, o distante e o próximo, o rico e o pobre, o conforto e a miséria, o passado e o futuro. Um ermo deixado por sua conta e risco, à mercê dos elementos (a neve, o frio, a chuva), mas também de uma oligarquia quase feudal, da companhia que controla com mão de ferro a mineração local.
Também por isso, o título Eldorado XXI é particularmente apropriado. La Rinconada é um "eldorado" ao qual acorrem os pobres e os desfavorecidos, uma espécie de gulag infernal onde se deslocam aqueles que buscam o totoloto de uma jazida de ouro que lhes pague as dívidas. La Rinconada é um Oeste selvagem do século XXI, tão selvagem como as zonas mais remotas e menos turísticas da China, da Índia, da antiga União Soviética, mas que ainda surgem menos nas notícias. É apenas uma panela de pressão mais concentrada, ao mesmo tempo intemporal e futurista, prisão ao ar livre e romaria popular, arredada do mundo real ao ponto de por ele ser quase intocada, mas que é finalmente indissociável da globalização que tudo arrasta.
Salomé Lamas filma esse mundo com intensa curiosidade, mas sem condescendência nem entomologia. Filma-o, antes, como se estivesse a desbravar um território ainda inexplorado, ou como se tivesse descoberto um último reduto de uma sociedade pós-apocalíptica ainda presa a modelos pré-apocalípticos. Como se Werner Herzog e Wang Bing se tivessem juntado para filmar um Mad Max povero, num curioso movimento que vai da escuridão em direcção à luz.
A referência a Herzog é evidente, devido à dimensão de aventura e desafio que é rodar num sítio tão remoto (e, pelo que a realizadora conta, as filmagens não foram pêra doce, mas Herzog também nunca foi exactamente romântico). E é ainda mais inevitável pensar em Wang (que tem um novo filme a estrear-se no Forum por estes dias, Ta'ang): Eldorado XXI abre com um assombroso plano longo sobre o interminável ir e vir de mineiros que podia vir direitinho de um filme do chinês. Mas o trabalho de som de Bruno Martins e a sagacidade da realizadora emprestam-lhe uma dimensão narrativa, um movimento, que ajuda o espectador a entrar no filme e a manter-se atento que seria impensável no cinema opaco, e muito mais austero, do realizador chinês.
Wang será, quando muito, uma das múltiplas referências de um filme que se inscreve, por direito próprio, na mais vital linhagem dos autores contemporâneos a trabalharem nas fronteiras do real, alguns dos quais estão presentes em Berlim este ano (não apenas Wang, mas também Avi Mograbi, Måns Månsson ou Gianfranco Rosi). Eldorado XXI é um cristal luminosamente negro de uma cineasta que sabe, muito bem, o que está a fazer. Acontece ser portuguesa e chamar-se Salomé Lamas.