A derrocada de uma crença
A derrocada de uma crença é o “tema” do segundo livro do autor brasileiro Marcello Quintanilha publicado em Portugal.
O sorriso de Daniela faz perder a cabeça a Rosângela, sua prima, desnorteando-a, empurrando-a para uma angústia sem fuga. Não é o riso, mas o sorriso, rasgão branco que a fere. Sinal de uma beleza que, apesar de macerada e sofrida, não se vai embora (“a sua crista nunca baixava”) e que conduzirá Rosângela ao abismo. Dentista de Niterói, mãe de dois filhos, casada com Mário, médico de sucesso e bom pai, ela não consegue dar sentido a essa presença, não a reconhece e, não a reconhecendo, deixa ela própria de saber quem é.
Talco de Vidro, o segundo livro de banda desenhada de Marcello Quintanilha (Niterói, 1971) publicado em Portugal, distancia-se de Tungsténio (também uma edição da Polvo). No lugar da polifonia dessa obra estão agora a vida interior e as acções de uma só personagem, e as ruas suadas de Salvador desapareceram, cedendo o palco aos edifícios, às estradas e praias de Niterói. É desta deslocação que se forma o torvelinho de flashbacks, de repetições (entre outras imagens, a do rosto de Daniele, sempre a assombrar), de impasses narrativos (resolvidos mais à frente), que introduzirá o leitor na cabeça de Rosângela.
Numa aproximação superficial, Talco de Vidro podia ser lido como o retrato de uma certa classe média-alta brasileira acossada pela ascensão social e económica dos grupos mais desfavorecidos, mas furta-se a essa oportunidade (ou a esse oportunismo). O que as suas páginas contam é a derrocada de uma crença, e os seus efeitos sobre uma vida humana. Rosângela achava-se “superior”, tinha essa sensação. Formara-se, casara-se bem, tivera o apoio dos pais (que lhe montaram um consultório), ao contrário da prima que, tentando escapar ao ciclo de reprodução social, se precipitara nos mesmos erros da mãe. O casamento falhado, os abusos do marido e as dificuldades económicas não impediram, no entanto, Daniela de renascer. E, com o mesmo sorriso, ela atravessará a fonteira que separa Barreto, (subúrbio, “lugar que ainda passa trem, cruz credo”) de Niterói, para regressar ao consultório de Rosângela.
A partir daqui nasce uma obsessão, que sem imagem ou perseguição, fará ruir o mundo da Doutora, ampliando-lhe e despertando-lhe novas sensações. A boca do marido, no preciso momento em que este, numa festa, se gaba do seu empreendimento, escancara-se com dentes podres, desfigurando-lhe o rosto. O seu cheiro torna-se insuportável, fede a pústula dental e, jura Rosângela, não é alucinação. Resta a esta mulher começar uma nova vida, libertando-se do casamento, tentando viver o que nunca viveu. Só assim, aplacará a agonia. Terá vários parceiros sexuais, experimentará drogas. Abre-se, finalmente, para a vida e a felicidade à espera do regresso da prima ao consultório, a fim de ajustar contas.
Mas até esse dia não encontra ninguém que passe “a mão de leve na cabeça dela”. E entre fodas, consultas e cafés com a amiga, a insatisfação e o sufoco permanecem. A sensação de superioridade transforma-se numa sensação de vazio que o desenho de Marcello Quintanilha ajuda a instalar. Sem a rugosidade e as texturas do de Tungsténio, cobre-se de uma impessoalidade gráfica que desumaniza as personagens e os lugares. A marca da sua mão, de tão “objectiva” e técnica, uniformiza rostos e corpos, e as praias e as ruas são menos lugares em que as acções se inscrevem, do que discretíssimas pausas musicais numa turbulência doentia.
Até que depois de uma emotiva catarse familiar, a Doutora parece finalmente interagir com os outros. Entra na paisagem, descalça-se (as personagens nesta banda desenhada “andam” de carro) e põe os pés na praia. Já não espera a prima no consultório para lhe dizer que mudou. Mas Marcello Quintanilha não a libertará e, totalmente transtornada pela sensação que é agora um sentimento, Rosângela cairá. A roupa da inveja domina-a até ao fim.