Jagger, Scorsese, rock'n'roll: o disco Vinyl começa a rodar esta noite
Um Rolling Stone e o realizador que bem conhece as Mean Streets de Nova Iorque reenviam a televisão para 1973, o ano em que colidem rock, punk, glam, disco e hip-hop. Estreia-se esta madrugada nos EUA e em Portugal.
Nada é subtil em Vinyl. Nem a ficha técnica – realização de Martin Scorsese, história de Scorsese, Mick Jagger e Terence Winter, com o filho do Rolling Stones, James, e a filha do realizador dos Sex Pistols Julian Temple, Juno, como actores –, nem as cores saturadas, nem a cocaína inalada. E muito menos o rock ‘n’roll emulado. Das alcatifas farfalhudas da Nova Iorque de 1973 para o mundo, do blues ao punk em duas horas, Vinyl começa a tocar esta noite (em Portugal, será o canal TV Séries a pô-lo a girar).
Um dos primeiros grandes dividendos da transformação do canal em "Home of HBO" operada em Setembro passado, Vinyl estreia-se neste canal premium com um episódio de 120 minutos às 2h da madrugada de domingo para segunda, para depois rodar às segundas-feiras às 22h45 até completar os seus dez episódios. Scorsese e Jagger novamente reunidos, e mais uma vez em 1973 – o ano de Mean Streets, mergulho do realizador no submundo de Nova Iorque, e dos Stones na banda-sonora do filme, experiência que teria depois sequência no filme-concerto do grupo britânico, Shine a Light (2008), realizado por Marty. O escritor e jornalista Rich Cohen junta-se à autoria de Vinyl, um projecto do qual não é conhecido o orçamento, mas que é evidentemente ambicioso.
“Certo: Martin Scorsese. Mick Jagger. Rock'n'roll. Nem quero saber o que é – é impossível que eu não visse isso”, disse a si mesmo Terence Winter quando se convenceu a entrar no projecto, pondo-se na posição do espectador no New York Times. Scorsese fez o piloto – “o filme”, como lhe chamou –, e Winter (Os Sopranos, O Lobo de Wall Street, Boardwalk Empire) tomou conta do resto, “a série”.
A ideia, de Jagger, nasceu em meados dos anos 1990 e era para cinema – o filme que nunca o seria chamava-se The Long Play –, mas os efeitos da crise em Hollywood levaram-na à televisão. Um território que apela a "realizadores de cinema", um canto de sereia cuja canção já ouvimos há mais de uma década. Scorsese já tinha a relação com a HBO bem oleada por causa de Boardwalk Empire (foi produtor executivo e realizador do episódio-piloto da série) e o seu actor Bobby Cannavale debaixo de olho. “A textura de tudo, a vida… é o que o Mick trouxe”, diz Scorsese ao Los Angeles Times sobre o papel de produtor e criativo do vocalista de 72 anos, que teve ainda envolvimento directo no casting (que conta com Olivia Wilde ou Ray Romano), na escolha musical, no guarda-roupa e nos guiões.
Quando a apresentou aos críticos e à imprensa em Janeiro, o realizador assumiu que a ideia era que a música se tornasse "parte da narrativa", sim, mas, mais do que isso, "que toda a narrativa [fosse] como uma peça musical”. E Vinyl é um choque musical e de “cenas” único, do élan dos blues e de Bo Didley à Factory de Andy Warhol.
Uma Nova Iorque Taxi Driver
Em 1973, colide o que resta dos 60s (Donny Osmond), o que é o rock (Led Zeppelin, Iggy e os Stooges) e o que serão o punk, o glam, o disco e o hip-hop. Tudo numa cidade suja e intoxicada, casa de editoras, rádios e promotores que se alimentam de pós vários para noites de Fear and Loathing e abandono glitter – com a Personality Crisis dos New York Dolls a explodir em epifania ao lado do primeiro scratch num vinil no Bronx. Ah, e o Topo Gigio.
Todos conhecem os relatos dos comportamentos da estrela de rock – “atirar televisores pela janela, sexo excessivo e drogas e essas coisas”, diz casualmente Mick Jagger ao LA Times sobre a sua ideia para a série. Na realidade, “os executivos [da indústria é que] eram verdadeiramente doidos”, acrescenta. Vinyl fala, claro, para o meio musical (a antestreia da série, num cinema em Lisboa com membros dos Xutos & Pontapés ou Miguel Ângelo na plateia, não foi parca em explosões de riso, tanto fruto da comédia quanto do reconhecimento de certos cenários), mas não resiste ao vai-vém de uma câmara entre o espectador e o músico em palco que, zoom in e zoom out, tenta capturar o arrebatamento da experiência da música.
O nosso guia neste vai-e-vem é Richie Finestra, um Bobby Cannavale que percorre todo o espectro da inocência, da euforia e do desespero de um editor discográfico em apuros e que faz a ponte entre retratos gerais da era e as emulações mais difícieis e minadas das grandes figuras da história do rock dos anos 1970 e afins – pense Robert Plant, Lou Reed, David Bowie –, que se misturam com bandas ficcionais. Segundo escreve o Los Angeles Times, não parece ter havido vontade de inscrever os Rolling Stones no plot. “Todas as pessoas verdadeiras que representamos foram notificadas” de que seriam personagens na série, diz Winter ao Yahoo TV; algumas viram mesmo excertos do guião. Já a crítica recebeu Vinyl com curiosidade, elogios e poucas reacções francamente negativas. “Excelente”, escreve a Rolling Stone, “mas não muito apelativa nem fresca”, avisa o New York Times sobre a intriga mais noveleira que tomará conta dos episódios seguintes e sobre a visão virginal dos blues que propala.
Vinyl exigiu a recriação meticulosa de espaços interiores que tresandam a 70s (em toda a sua glória de tons terra e fumo de nicotina) e de quarteirões inteiros com graffiti e lixo dispostos para recriar a “Nova Iorque Taxi Driver” em que Winter cresceu. Esta é também a primeira de várias doses de “Nova Iorque, anos 1970” que a “televisão” vai dar ao mundo nos próximos tempos: na calha estão o projecto de David Simon (The Wire) sobre a indústria porno em Times Square e a série de Baz Luhrmann para a Netflix sobre os primórdios do hip-hop e do disco sound no Bronx. E Vinyl é também um capítulo do romance entre os "grandes nomes de Hollywood" com as sucessivas eras douradas da televisão, com nomes como o de Steven Soderbergh, Anthony Hopkins, Steven Spielberg, Jane Fonda ou Viola Davis enlevados e J.J. Abrams (11.22.63 para o Hulu, que a Fox transmitirá mundialmente) e Judd Apatow (com o iminente Love a estrear-se no Netflix) a voltarem ao lugar onde já foram felizes.
Mas regressemos a esta série com um star power de megawatts na produção, e a Nova Iorque, 1973. “Patti Smith disse que se és um jovem artista em busca de um caminho, então não venhas para Nova Iorque”, cita Scorsese ao diário californiano. “Ela tem razão. Por isso Vinyl é sobre a cidade com que esses miúdos sonham – uma cidade louca, suja, muito perigosa em algumas zonas, que às vezes não funciona, mas também viva."