Um espectáculo para mostrar em palco tudo o que costuma ficar nos bastidores

Joclécio Azevedo conclui com a estreia de Intermitências um longo processo de criação aberto ao público.

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Os bailarinos aparecem e desaparecem por trás de fumo Paulo Pimenta
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Meses de processo de criação (às vezes mais), para 50 minutos de palco (às vezes menos).

É assim tão desproporcional – e talvez se possa dizer também: tão injusta – a relação entre a quantidade de suor que fica nos bastidores de um processo criativo e o tempo de que um espectáculo dispõe efectivamente para passar com os seus espectadores, antes de ser inevitavelmente ofuscado pelo espectáculo que se segue na linha de produção em série da economia de mercado paralela das artes performativas. Mais do que um bom tema para uma conversa, tudo isto pareceu a Joclécio Azevedo um bom tema para um espectáculo: este que o coreógrafo e bailarino agora estreia no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, e que ao longo de quase um ano foi mostrando ao público em diferentes fases de gestação, para tornar visível, em toda a sua extensão, “o lado invisível” do trabalho de criação.

Como os bailarinos que por três vezes aparecem e desaparecem por trás de uma cortina de fumo ao longo destes 50 minutos, o projecto Intermitências apareceu e desapareceu três vezes da vista dos espectadores ao longo dos últimos dez meses. Cada uma das fases de trabalho de bastidores (as residências com o artista plástico Jérémy Pajeanc, o músico Victor Afonso e os bailarinos André Mendes, Bruno Senune, Camila Neves e Joana Castro) teve os seus minutos de fama em cima do palco, os espectáculos “provisórios” Intermitências #1 (Maio), Intermitências #2 (Setembro) e Intermitências #3 (Novembro) que o Rivoli incluiu na sua programação regular, abrindo à equipa artística do projecto a rara oportunidade de construir uma relação de longo prazo com uma comunidade de espectadores. Não menos importante, sublinha Joclécio Azevedo, a exposição periódica ao público da versão work-in-progress de Intermitências teve o bónus de gerar um feedback em tempo real: “Normalmente, só tens um feedback depois da estreia do espectáculo e aí é tarde de mais: as opções já estão tomadas.”

Mais do que beneficiar o objecto agora consumado que é Intermitências, o processo beneficia a reflexão sobre o actual contexto de produção, difusão e consumo das artes performativas, acredita o coreógrafo – que de resto, enquanto artista residente do Circular – Festival de Artes Performativas, tem podido trabalhar formatos menos compactados pela pressão das estreias. “Há muito que venho reflectindo sobre a relação entre as instituições e os artistas independentes, mas este projecto nasce especificamente da alteração que o Rivoli forçou no Porto, ao abrir a cidade a uma programação mais intensa. Neste contexto, achei importante pensar sobre o espaço que é dado ao processo de criação e chamar a atenção para o tempo de maturação que é indispensável para que um espectáculo se construa”, diz ao PÚBLICO.

Intermitências é, em certo sentido, um compromisso entre o tempo desejavelmente lento do processo criativo de bastidores e a urgência da estreia: uma maneira de dar simultaneamente resposta à necessidade de amadurecer em privado e ao desejo de mostrar em público. Nos intervalos entre cada uma das três apresentações do projecto, houve tempo para a colaboração (às vezes à distância, como no caso da residência com Victor Afonso, que se manteve na Guarda enquanto Joclécio Azevedo trabalhava no Porto) e tempo para a sedimentação. “Cada novo bloco resultou de experiências dos anteriores. Mas este bloco final, ainda que traga toda a memória do que está por trás, não deixa de ser uma coisa completamente nova”, sublinha o coreógrafo. Passaram-se dez meses, mas ainda consegue reconstituir como chegou até aqui: o preto que domina o palco, por exemplo (assim como “a ideia de um corpo industrializado, mecanizado, hiperactivo, hiper-activado”), “veio das primeiras tentativas de fixar um mapa do processo com o Jérémy Pajeanc”, um mapa que de tão emendado se transformou numa densa camada de tinta. É uma boa maneira de resumir todo o projecto Intermitências: “Às tantas já estávamos a escrever por cima da escrita – isso trouxe ao processo uma ideia de palimpsesto. Há sempre qualquer coisa por baixo, mas é preciso escavar para a descobrir.”

Em Lisboa, quando apresentar o espectáculo no Festival Cumplicidades (Teatro da Trindade, 12 e 13 de Março), será ele próprio o arqueólogo, numa conferência em que recapitulará o processo, à atenção de um público que não pôde vê-lo a crescer e fazer-se à vida: “O contexto de produção é uma parte fundamental do meu trabalho – o espectáculo final é só uma percentagem ínfima do que eu produzo subterraneamente como coreógrafo.”

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