Pessoa reinventado
Maria Gabriela Llansol não se limitou a ler Pessoa, transformou-o numa “figura” em alguns dos seus livros e conviveu com ele na escrita do seu diário, ao longo de trinta anos.
O quinto volume do Livro de Horas de Maria Gabriela Llansol, um imenso material de escrita diarística que faz parte do espólio da escritora, tem um carácter temático: a figura de Fernando Pessoa é, de maneira explícita ou implícita, próxima ou distante, o centro de atracção dos textos selecionados para este grosso volume por Maria Etelvina Santos, que também assina uma longa e indispensável introdução, para além das notas abundantes. A selecção abrange um período de trinta anos, de 1976, quando Llansol ainda vivia na Bélgica, até 2006, vinte e um anos depois de ter regressado a Portugal. O título deste volume é O Azul Imperfeito (expressão que a organizadora foi buscar a um dos textos aqui incluídos) e incorpora entre parêntesis uma indicação descritiva de natureza editorial: Pessoa em Llansol, 1976-2006.
Entre a multidão de figuras históricas, sobretudo da história literária e da filosofia, que Maria Gabriela Llansol convocou, nos seus livros, como “figuras” (que não são exactamente personagens ou, pelo menos, resistem a ser caracterizadas no interior das canónicas categorias narrativas), Pessoa tem um lugar de enorme importância, rebaptizado com o nome de Aossê. Ele surge pela primeira vez como uma presença relevante em Um Falcão no Punho (1985) e está no centro daquilo a que Maria Etelvina Santos chama o “Projecto Lisboaleipzig”. Esse projecto compreende Lisboaleipzig I – O Encontro Inesperado do Diverso (1994) e Lisboaleipzig II – O Ensaio de Música (1995), mas fez crescer à sua volta muito mais material que ficou inédito e que agora se publica. Lisboa e Leipzig, que Llansol aglutina num só nome, são os dois pólos geográfico-culturais de onde emergem Fernando Pessoa e Johann Sebastian Bach. Como sabemos, tornar o tempo histórico horizontal e estabelecer cronologias segundo uma lei da simultaneidade, permitindo diálogos e encontros inverosímeis (como este, dito “inesperado”, entre Bach e Pessoa), foi o que Llansol fez com uma enorme liberdade em toda a sua obra. As figuras desistoricizadas e submetidas a deslocações paradoxais alargam as geografias e as culturas nacionais, entram num território que tem a escala da história e da geografia da Europa. A obra de Maria Gabriela Llansol desenha mapas culturais e forma constelações de tempos históricos.
O extenso material reunido neste volume, tendo Pessoa como centro, não se pode dizer que é “sobre” Pessoa, nem “a partir” de Pessoa. O “sobre” remete para uma dimensão ensaística que não é a da escrita de Llansol; o “a partir de” remete para uma dimensão narrativa e ficcional que também lhe é estranha (o que não invalida que encontremos “insights de enorme alcance interpretativo e princípios de narratividade altamente produtivos). Ficamos assim numa região inclassificável, numa zona indefinida, que faz a singularidade da obra desta escritora. Experimentemos ler um excerto: “Por que é que Bach pesa sobre os pés e produz este ruído tonitroante ao subir as escadas? Com Anna Magdalena, com Gottfried, com Johanna nunca há uma sobreposição ou um choque de espaços, mas com o perfil de Aossê mergulhado, ocioso, na toalha da linguagem, há, sobretudo à noite, um sistema de incompatibilidades que se desencadeia, como se a Música devorasse Aossê, e este repelisse para longe o trabalho melódico de Bach. As partes do apartamento são então independentes, e o silêncio em que Aossê penetra é uma cavalgada que persegue com outro ritmo Bach. E a escrita musical deste, por mais solúvel que seja, não deixa de lavrar ou desagregar a escrita. Até que o conflito irrompe, e Aossê grita que ele é quatro poetas portugueses, e que Bach é um só, mas grande músico”. Temos nesta passagem um episódio narrativo, mas isso está longe de ser a regra neste diário. E quanto às anotações de ordem biográfica, isto é, os acontecimentos cujo registo define a escrita diarística como género, são muito pouco frequentes. Podemos depreender que Maria Gabriela Llansol vivia permanentemente em situação de “escrita”, e mesmo quando nessa escrita emerge a contingência quotidiana e a “prosa do mundo” é para serem reelaboradas como texto, segundo uma definição de texto que foge à escrita representativa. Mas há outra questão essencial que este volume dá a pensar: a contaminação da música pela literatura e vice-versa.
Quem se interessa por penetrar e desbravar a sua obra imensa, este quinto volume do Livro de Horas (mais ainda do que os anteriores, já que abrange um arco temporal muito mais largo) é precioso. Ele permite-nos perceber perfeitamente que Maria Gabriela Llansol nunca escreveu livros como unidades autónomas. O seu trabalho apela à ideia de escrita, e o que dela resulta move-se de uns livros para os outros, alimenta projectos e continuidades que se vão redesenhando com o tempo. A sua obra é um imenso e intrincado puzzle, como sugere Maria Etelvina Santos na sua Introdução. Neste aspecto, ela tem algumas afinidades com a de Pessoa. Maria Gabriela Llansol, podemos perceber, é também uma escritora póstuma, não apenas pelo imenso espólio inédito que deixou, mas também porque podemos aproximá-la da categoria nietzschiana dos “homens póstumos”, figuras de grande envergadura, que nunca são contemporâneos do seu próprio tempo.