Só para dizer que é possível travar o tempo

A fotógrafa Pauliana Valente Pimentel encontrou em Castro Marim, Algarve, um bom lugar para desacelerar a marcha do tempo. A Galeria das Salgadeiras, em Lisboa, mostra o resultado dessa travagem.

Foto
Becky and the snake Pauliana Valente Pimentel

A encruzilhada em que Pauliana Valente Pimentel se encontra(va) é a de muitos fotógrafos de hoje: o que fazer quando deixamos de ter o poder da iniciativa? O que fazer quando nos tiram a liberdade para poder arriscar? Perante o labirinto, desistir ou parar é sempre uma possibilidade. Ou então andar ao “sabor dos convites”, saltando de residência artística em residência artística, uma alternativa que, pelo menos, permite continuar. Conseguir através destas janelas de oportunidade (que para além de comida, cama e roupa lavada, incluem predisposição e tempo para pensar) algo mais do que o simples prémio de participação ou a medalha de bom comportamento já dependerá da força e do talento de cada um. Em The Behaviour of Being (Galeria das Salgadeiras, Lisboa, até 5 de Março), Pauliana mostra como se pode entrar no seio de um grupo de treze artistas de várias nacionalidades em pleno vulcão criativo e mostrar algo mais do que animadas reuniões de grupo ou esfuziantes rasgos de génio de artistas em modo Erasmus.

Na manhã em que acordou em Castro Marim, no início do Verão do ano passado, a fotógrafa que até 2014 fez parte do colectivo kameraphoto, entretanto extinto, não tinha nenhum plano de trabalho definido. Foi convidada a integrar um grupo de artistas para a primeira edição da Beekeepers, uma residência criada pelos britânicos Tom Leamon e Jennifer Mutelli e pelo português Pedro Leitão naquela localidade algarvia. Sem nenhum caderno de encargos e ainda sem saber bem o que queria e para onde iria direccionar o seu olhar, percebeu no entanto que não queria fazer algo que se aproximasse de “uma reportagem”. Certo é que, com mais ou menos reportagem, o grupo de imagens escolhido para esta exposição indicia uma vontade de transmitir o “ambiente” do que lá se passou em dez dias de cruzamento de várias artes, de diferentes maneiras de ser e pensar.

Durante essa coabitação com a expressão plástica de cada um, o que emerge das fotografias de Pauliana não é tanto a singularidade dos artistas (nem do suporte que cultivaram), mas a sua predisposição para se fundirem com a natureza e nela procurarem inspiração e refúgio. The Behaviour of Being oferece à natureza (e à paisagem) um protagonismo, que não sendo subliminar, também não é totalmente explícito – vai marcando presença a cada passo, como um respirar, dando a quem ficou nestas imagens uma presença meio alienígena. “Acho que para criar é preciso voltar à natureza. Isto pode parecer romântico, mas sinto que é preciso parar para pensar, é preciso parar o tempo. Estamos numa fase em que tudo é feito a correr. Os artistas sentiram que este lugar e esta residência os travou. Estavam a criar num sítio onde não havia quase nada.”

Mas aquela manhã em que acordou em Castro Marim não era a primeira da fotógrafa lisboeta naquele lugar. Era uma manhã como tantas outras nos últimos anos em que procurou este refúgio para estadas mais ou menos veraneantes. Ou seja, apesar do inédito da situação, o seu olhar era o menos desinformado de todos, um avanço útil para quem arrisca decidir o que fazer mesmo em cima do acontecimento. A essa familiaridade com o lugar, Pauliana juntou uma injecção de sangue novo dada pela pujança de artistas em efervescência criativa. “Era a única a fazer fotografia. Era muito bonito ver o processo criativo de todos no dia-a-dia. Era contagiante. Dei por mim a querer desenhar, a escrever e a fazer outras coisas. Senti isto de uma maneira muito forte.” E quando as suas câmaras começaram a disparar, o caminho escolhido era já o do instinto, apenas norteado pelo desejo de captar algum “optimismo” juvenil, uma “inocência” de quem está na rampa de lançamento, já com os motores ligados e com a expectativa de que tudo pode acontecer. “Senti que estava numa família, uma família que estava concentrada no acto de criação. Quis fugir ao registo ‘dos’ artistas. Neste caso, era uma artista como eles.”

O que se nota (e o que se vê) nas duas dezenas de fotografias que dão forma a The Behaviour of Being é que houve uma tentativa de fugir ao registo de processos ou de procedimentos que de forma explícita revelassem quem são e o que faziam aqueles artistas naquele lugar. “Nesta residência eu podia fazer o que quisesse. Podia fotografá-los a trabalhar. Mas não queria isso. Senti que precisava de estar também comigo, de estar dentro destas paisagens que já conhecia, de acordar cedo (…), passear sozinha pelos campos. Quando me encontrava com eles registava os momentos de pausa sem me preocupar com tudo o que poderia estar a acontecer noutro lugar.” Essa despreocupação traduz-se num conjunto de imagens que fazem da ambiguidade uma das suas maiores forças – não sabemos o que se está realmente a passar nem onde tudo se passa, desnorte que só a presença do mar atenua, dando-nos a noção de que podemos estar perto de um qualquer litoral.

Ao longo do trabalho, o ambiente vai alternando entre a languidez e o espanto, como se este grupo de criadores tivesse caído de pára-quedas com a missão de descobrir e estudar um novo planeta. E aqui, por mais falta de ambição temática ou de género, Pauliana Valente Pimentel (Lisboa, 1975) não conseguiu fugir a uma tendência do seu trabalho recente, que é a de registar algo que possa representar a inquietude das gerações mais novas, a irreverência optimista de quem procura questionar o presente e o que nele está convencionado, como aconteceu em The Passenger (2012) ou Youth of Athens (2012).

Cat after painting
Getting inspiration
Henrique and the mouse
Drying herbs
Pauliana’s Bedroom
Jennifer looking the sea
Salt
Pathmaker

Pausa, não pose
À semelhança destes trabalhos, em The Behaviour of Being os corpos surgem em modo de pausa (não necessariamente em pose), num estado de contemplação e relaxamento, modos de estar paradoxalmente contrários à ideia de permanente sangue na guelra que se cola às idades mais verdes. A opção de não incluir nenhuma fotografia com um olhar directo para a câmara - escolha onde o desafio e a provocação mais se revelam e onde o fotografado por regra mais se destaca - mostra como Pauliana tentou construir um corpo de imagens onde artistas e natureza se misturam. E onde há espaço para tentar “desacelerar” tudo o mais o possível (sobretudo, sempre ele, o tempo).

E foi fácil entrar num grupo de criadores com uma câmara sem parecer que estava a impor um olhar de fora, como um intruso? “Tenho facilidade em lidar com as pessoas. Não sei se é por causa de viajar há muito tempo e para sítios onde as pessoas não falam a minha língua, mas criei um código corporal que me ajuda. Gosto de estar com as pessoas. Para mim, é mais importante ficar na casa de alguém que não conheço durante um dia do que andar a correr de um lado para o outro. Quando quero fotografar uma pessoa, não uso zoom, vou ter com ela.” A maneira como a fotógrafa se tornou “um deles” sente-se no espreguiçar (de costas) de uma pintora com marcas nas pernas, depois de muito tempo sentada e ainda com o frasco dos pincéis na mão. Ou na despretensão (e enigma) de uma imagem em que duas mulheres preparam uma instalação artística no mais incaracterístico silvado. São momentos da mais pura banalidade e pelos quais poucos dariam alguma coisa, mas aos quais Pauliana atribuiu relevância, transformando-os em momentos emblemáticos da serenidade e da liberdade para se fazer do tempo o que se quiser (pelo menos por alguns dias).

Um dos participantes da residência artística (feita em colaboração com a The Cob Gallery de Londres) disse a Pauliana, na inauguração da exposição, que estas fotografias tinham conseguido captar não só espírito do lugar como a aura dos que fizeram parte deste grupo de criadores. Disseram-lhe que “em algumas imagens era possível sentir o cheiro, a luz e o calor”, coisas nem sempre “óbvias” e “nem sempre fáceis” de conseguir transmitir em fotografia. Certo é que este é o tipo de elogios capaz de deixar “muito contente” qualquer fotógrafo. Mas, para além do estímulo dos sentidos, a maior virtude de The Behaviour of Being talvez seja o auto-retrato que Pauliana conseguiu fazer através da imagem de outros. Um olhar para si, introspectivo, que responde a um dos conselhos de que mais se lembra quando fotografa, aquele que lhe deu o fotógrafo americano Stephen Shore, depois de elogiar os aspectos formais do seu trabalho: “Agora, em vez de veres o mundo a passar através de uma janela, olha para ti, para dentro, e mostra quem és e o queres dizer com o que vês.”

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