Josef Nadj segue o olhar esquivo de Dolores
O coreógrafo Josef Nadj apresenta este sábado em Almada Pour Dolores, 24 sequências musicais criadas a partir da máscara a que deu esse nome.
Passeando por um qualquer marché aux puces, o coreógrafo franco-sérvio Josef Nadj estacou diante de uma máscara de datação incerta – antiga, certamente – que fixava o rosto de uma mulher. O que o seduziu de imediato foi o olhar esquivo da máscara, os dois olhos mirando qualquer coisa longínqua, passada, evitando ou recusando o confronto directo. “Fiquei fascinado com a estranheza dessa presença”, confessa Nadj ao PÚBLICO. “Desde que fiz alguma pesquisa sobre máscaras, tornei-me um admirador destes objectos e esta máscara em especial intrigou-me. Comprei-a e quis imediatamente colocá-la num espectáculo.”
Esse espectáculo chama-se Pour Dolores e é apresentado em estreia nacional este sábado no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada. Dolores é tão-simplesmente o nome com que Nadj resolveu baptizar a figura cuja máscara “permite mostrar e esconder uma mulher”. Em Pour Dolores, diz, “não há história, há apenas uma presença pura”. A essa presença Nadj aplica depois o mesmo efeito de desdobramento da anterior criação Paysage Inconnu – peça que teve estreia mundial em Lisboa, em 2014, no Festival de Almada –, reforçando a aproximação do peculiar e nebuloso universo do coreógrafo a uma forma de apagamento da identidade.
O desdobramento, mais uma vez, acontece pela convocação de um duplo entregue a Ivan Fatjo. E o efeito é simples: envergando o mesmo fato de gala de Nadj, Fatjo cobre o rosto não com uma meia de nylon (como faziam ambos em Paysage Inconnu) mas com uma réplica da máscara de Dolores que, no entanto, dirige o olhar na direcção oposta da máscara original.
Música de choque
A atracção de Nadj pelo teatro tradicional japonês não é nova e toma um lugar muito claro na ocupação do espaço (poética, críptica, silenciosa), como se respeitasse um ritualismo cujas regras ignoramos mas do qual ficamos suspensos. “É verdade que aprendi muito com o teatro japonês, o nô, o kabuki ou o bunraku, e forçosamente há muito disso que posso observar naquilo que faço em termos de qualidade do movimento e do silêncio”, concede. Mas Pour Dolores vai muito além de uma evocação e quebra o silêncio de forma desconcertante. Até porque há um piano disposto com evidente autoridade no palco, mas que tanto pode ser tocado de forma selvática, com arcos de violencelo quebrados – duas figuras, de rostos femininos e corpos masculinos, abordando um objecto alienígena –, como para encher balões.
Pour Dolores avança, aliás, ao ritmo de 24 sequências musicais que vão do simples acto de bater as palmas aos menos evidentes gestos de partir os arcos de violino ou de os usar para extrair som da boca de uma estátua de ameaçadora ferocidade felina. Dolores, a quem Nadj atribuiu um nome a que não acrescentou uma biografia, é um enigma constante, ampliado pelo interesse desmedido de Nadj na aplicação contemporânea dos mandamentos do movimento Fluxus, que nos anos 60 e 70 se propôs criar um contínuo entre a prática artística e a vida. Mais do que qualquer enunciado teórico, no entanto, Pour Dolores vive muito do contacto com a estranheza, e da integração quase infantil e arbitrária dessa estranheza que pode, afinal, ser apenas a imaginação do que faria esta Dolores se colocada na posição de desadequação deste nosso mundo, diante de seringas, arcos de violoncelo ou estátuas.
Ao procurarem ligações improváveis entre os objectos, Dolores e o seu duplo produzem a música áspera de um choque – entre a sua expressão esquiva e a preparação do mundo para a receber.