A “antena” de Lenine na onda do Carnaval do Recife

O Carnaval do Recife tem o lado feérico e hedonista dos outros carnavais. Mas é também um enorme festival que cruza as heranças índias, negras e portuguesas com o contemporâneo. Lenine mostra-nos por que é que este é o melhor lugar do mundo para se conhecer a música do Brasil.

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Sara Tavares entre Naná Vasconcelos (esq.) e Lenine Peu Hatz/Seturel

Por volta das cinco da tarde de sexta-feira, os membros das 12 nações de maracatu começaram a reunir-se na rua da Moeda, no coração histórico do Recife, a capital económica e cultural do Nordeste do Brasil. Levavam os seus tambores, as suas roupas coloridas e a missão de caminharem ao longo de uma escassas centenas de metros até ao gigantesco palco do Marco Zero para inaugurarem o Carnaval. A dirigir a operação estava Naná Vasconcelos, o pernambucano que ganhou oito vezes o prémio de melhor percussionista do mundo da revista norte-americana Down Beat e correu os palcos do planeta ao lado de músicos como Pat Metheny ou Jan Garbarek. Ao seu lado, os convidados Lenine, também ele um natural do Recife, e a portuguesa de ascendência cabo-verdiana Sara Tavares.

Ao sinal combinado, o som hedonista do maracatu de baque solto ecoou pelas ruas que conservam fachadas de traça colonial. Uma estranha energia eufórica instalou-se na cidade, que apesar de estar a sofrer com o surto de Zika (o maior foco de casos foi detectado em Pernambuco e ainda ontem um dos principais diários do estado alertava para a possível transmissão do vírus pela saliva), colocou a febre em compasso de espera para se entregar de corpo e alma à sua principal paixão colectiva. 

Sim, o Carnaval do Recife e da vizinha Olinda não dispensam aquele lado de festa excessiva e delirante que se faz com a dança, a máscara e o álcool. Mas, ver-se-ia em breve, aquele Carnaval é também um imponente manifesto da cultura do Nordeste. A cultura que se cristalizou em séculos de miscigenação entre índios, negros e europeus nos engenhos de açúcar instalados mais no interior. Mas também a cultura urbana e contemporânea que faz do Recife um dos principais pólos do Brasil na música, no cinema, na moda ou nas expressões da arte que nasce na Web. Quando Lenine, que lá nasceu há 57 anos, viaja pelo mundo e lhe perguntam sobre a melhor forma de conhecer o que é a música do Brasil, ele responde: “Vão ao Carnaval do Recife.” Porque, explica, “aqui é possível ver expressões de todas as regiões, além da cultura popular”.

Este ano podem ouvir concertos do Mestre do Forró, mas também dos vanguardistas Rappa ou de Emicida; pode ouvir-se a Spok Frevo Orquestra, mais DJ ou as novas gerações de música electrónica; nas ruas, podem escutar-se nações organizadas de maracatus ou grupos informais de frevo, mas também trios de sertanejos que viajaram do interior para espalhar a sua música entre a multidão. Tanto quanto desfiles de foliões, o Carnaval do Recife é um extenso festival cultural. “Há quatro anos, num sábado de Carnaval, às quatro horas da manhã, [já] amanhecendo, estava eu e Milton [Nascimento] cantando Paciência [um tema poético e nostálgico] no palco do Marco Zero. Isso é inconcebível num carnaval tradicional”, diz Lenine.

No palco do Marco Zero, as nações maracatu que tinham vindo da zona da Rua da Moeda estavam finalmente reunidas. Eram ao todo mais de 400 homens e mulheres. Na frente do palco, Naná Vasconcelos procurava dar coerência àquela amálgama de grupos. Tarefa difícil. Sara Tavares foi ainda assim capaz de cantar o seu Balancê sobre os ritmos dos batuques. Lenine interpretou Na pressão sem poder contar com os riffs de guitarras que fazem a imagem de marca do seu som. Ambos contaram com o precioso auxílio do coro das Voz Nagô. E com a flexibilidade de um ritmo em que tudo parece fácil de encaixar.

Cultura cosmopolita

Lenine é uma criação do Recife, não tanto pela influência da música tradicional mas pela cultura cosmopolita da cidade. “Tive a felicidade de nascer nessa cidade portuária que tem uma multiplicidade de expressões incríveis”, diz. “Aqui chegava de tudo. O Recife tem essa tradição da diversidade, faz parte da cidade, que foi um dos portos mais importantes do Brasil durante 200 anos.” Na sua infância, é claro que ouvia os cantores locais, como Jackson do Pandeiro. Mas “o que ouvi quando tomei consciência da música foram os The Police e os [Led] Zeppelin”. No seu percurso há uma origem, um princípio, uma herança, mas isso não determina tudo, explica: “Eu sou feito de raiz e antena. Quais são as proporções disso, não sei, nem me preocupo em saber." Para ele, que se considera um músico “contemporâneo", no sentido de ser "deste tempo”, o Recife e Pernambuco valem mais pela cultura de abertura, pela noção de “antena”, do que propriamente pela influência da proximidade. “A gente vem/Do tambor do Índio/A gente vem de Portugal/Vem do batuque negro/A gente vem/Do interior e da capital/A gente vem/Do fundo da floresta/Da selva urbana/Dos arranha-céus”, canta ele no seu Sob o mesmo céu.

A “antena” capta sinais do exterior, mas em muitos casos esses sinais impactam na raiz da cultura local. Lenine beneficiou mais da abertura, do cosmopolitismo do que da tradição, mas para muitos músicos do Recife, essa cultura rica e ancorada na História serviu de base segura para a descoberta. Chico Science, que morreu em 1997 com 31 anos, usava deliberadamente o maracatu como ponto de partida para criar uma música, o manguebeat, de pendor fortemente urbano, no qual a guitarra eléctrica se cruzava com a batida forte dos tambores. Otto, um pernambucano da zona do Agreste, fundiu o maracatu com a música electrónica e o forró com o rap.  

E é assim porque muitas das bases da tradição pernambucana partilham a mesma origem afro-americana do samba, do jazz ou do rap. A mais marcante é talvez a do maracatu. O  maracatu de baque solto é uma reminiscência da batucada africana que sobreviveu durante séculos na zona da mata e é hoje um poderoso símbolo de identidade cultural, não apenas dos pernambucanos do interior mas também dos habitantes das periferias da enorme cidade do Recife (3,7 milhões de habitantes). A sua outra versão, a do maracatu de baque virado, é mais ritmada, e a sua batida mais lenta. Na zona da mata, o maracatu de baque solto é o cenário sonoro em que se movimentam os caboclos de lança, homens com trajes decorados com milhares de lantejoulas e missangas (chegam a ostentar mais de 50 mil) e cabeleiras gigantescas de papel brilhante e colorido. Os caboclos de lança são os guardas do cortejo que, desde os finais do século XVII, os escravos negros realizavam após a escolha do seu rei. Nesse cortejo, a corte veste-se com sumptuosos trajes de veludo ao estilo setecentista, o que confere à cerimónia um colorido surreal.

Amálgama afro-luso-tropical

No palco do Marco Zero, não se viram caboclos de lança. A maioria movimenta-se nas zonas rurais, mas, durante o Carnaval, alguns hão-de viajar até ao Recife para se movimentarem entre a multidão – embora sem os gestos agressivos que exprimem nos cortejos. Mais fácil é encontrar grupos de caboclinhos (os caboclos resultam da miscigenação entre brancos e índios), que este ano, e pela primeira vez, foram chamados à abertura do Carnaval. São grupos que recriam rituais e trajes indígenas que hoje resistem na memória da etnografia e na persistência de grupos empenhados em dar-lhes vida. Ainda mais fácil é encontrar grupos de frevo, seja nos palcos oficiais seja dispersos pelas esquinas da cidade. Se os maracatus são o testemunho da produção cultural da Casa Grande & Senzala durante o período colonial português que o sociólogo Gilberto Freyre, também ele pernambucano, estudou, o frevo é um movimento negro que se serviu da música dos brancos para se consolidar no princípio do século XX.

No Palácio do Frevo, um edifício recuperado no centro do Recife, Joana Pires explica que a origem desta expressão está nas artes da capoeira. Mas se os movimentos da dança com os seus 120 passos catalogados ou o uso de um guarda-chuva como instrumento de defesa são uma herança negra, a música faz-se com trombones, trompetes, tubas ou saxofones de proveniência europeia. Frevo, de ferver, é um cozinhado com tempero para servir a movimentos hedonistas de uma multidão em transe – no palácio há um conjunto de fotografias extraordinárias captadas pelo francês Pierre Verger no final dos anos 1940 que mostram essa atmosfera. Hoje, o seu som, com refrãos harmónicos logo cortados por improvisos na melhor tradição do free jazz, suscita o interesse do Lincoln Center de Winton Marsalis. E justificou a sua inclusão na lista do Património Imaterial da UNESCO.

Para um estrangeiro, tudo seria mais fácil se essa amálgama afro-luso-tropical se resumisse ao frevo ou ao maracatu. A realidade é muito diferente. Se há um padrão para definir a expressão cultural do Carnaval do Recife e de Olinda é o da diversidade. “Mais do que identidade na cultura de Pernambuco, há uma questão semântica que revela muito. Note que Pernambuco é uma palavra gigantesca e nenhuma letra se repete”, diz Lenine. No seu ecossistema, há por isso que considerar outras expressões populares que projectaram o estado e alguns dos seus músicos para todo o Brasil ou para o mundo. Há que falar do coco de Jackson do Pandeiro, do forró de Luiz Gonzaga, do afoxé, da ciranda e, obviamente, das ondas contemporâneas, como o manguebeat, de Chico Science (o principal homenageado deste Carnaval) e da Nação Zumbi. Como se consegue explicar toda esta diversidade? Lenine encolhe os ombros. “É difícil. Eu tenho 57 anos e não consigo.”

O jornalista viajou a convite da Secretaria de Turismo do Governo do Estado de Pernambuco

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