De Tchékhov, restam apenas os corpos
Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a, abertura do GUIdance, é Victor Hugo Pontes a adaptar A Gaivota livrando-se das palavras e ficando apenas com os corpos dos bailarinos. Nunca um espectáculo do coreógrafo teve dança e texto tão próximos e tão afastados.
Victor Hugo Pontes sempre quis levar a palco A Gaivota, de Anton Tchékhov, uma das peças fundadoras do teatro moderno. Mas quando o encenador Nuno Cardoso – com quem trabalhou durante dez anos – lhe anunciou que ia montar a peça e o convidou para o assistir no processo, Victor Hugo ouviu claramente dentro de si um alarme de pânico e o peso inequívoco da desistência. A oportunidade esvaziava-se. Participando naquela Gaivota, parecia-lhe subitamente inviável voltar a trabalhar o mesmo texto mais tarde. O futuro – esse futuro que no texto de Tchékhov é provocado mas se revela turvo e insondável –, o seu futuro com aquele texto em concreto, terminava ali. Mas não terminava assim muito.
Com o tempo, essa primeira abordagem ao texto em que esteve envolvido deixou de reclamar exclusividade e o próprio percurso de Victor Hugo Pontes, fugindo do teatro e do texto na direcção da dança e do movimento, tornaram óbvio que a sua Gaivota seria necessariamente outra – uma não matava a outra. Passados quase seis anos sobre a estreia da versão de Nuno Cardoso, no Teatro Nacional de São João (TNSJ), no Porto, e após uma continuada colaboração que aproximou Victor Hugo do dramaturgo russo – assistiu ainda Cardoso em Platónov e Três Irmãs, e dirigiu também em 2010 Os Malefícios do Tabaco –, estreia esta quinta-feira, na abertura do GUIdance, festival internacional de dança de Guimarães (depois, 11 a 13 no TNSJ, 26 e 27 no Centro Cultural de Belém, Lisboa), a sua versão da peça de Tchékhov. Ou melhor, uma criação coreográfica a partir do texto de Tchékhov, intitulada Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a, e que, novamente, se deve em parte à abordagem original ao texto trabalhada ao lado de Cardoso.
Os processos de construção de um espectáculo seguidos por Nuno Cardoso partiam amiúde do convite aos actores para, num primeiro momento, “fazerem a história toda em improvisação”, recorda Victor Hugo Pontes ao Ípsilon. “Achava aquilo sempre muito fascinante.” Os passos seguintes, mais afirmativos da visão do encenador e desbravando já a direcção de um caminho, custavam-lhe depois por limitarem essa promessa inicial. Do muito, parecia ficar pouco. Das possibilidades infinitas, restava uma visão – que, ainda por cima, não era a sua.
Victor Hugo Pontes, cujo percurso preteriu progressivamente o teatro em favor da dança, tenta agora ater-se a esse momento de possibilidade. Na escusa em adoptar o texto, o coreógrafo cria uma obra que fica a banhar nesse caldo de abstracção, preferindo não se render às palavras e à inevitável ‘tridimensionalização’ do texto própria do teatro. Tomando o texto integral de A Gaivota, trabalhado com os bailarinos cena a cena, e respeitando a narrativa de Tchékhov, Pontes esconde as palavras para deixar A Gaivota tão livre quanto possível. “Os conflitos já estão lá, já está tudo desenhado à partida”, argumenta. “Para mim, a dança é acção, nunca é folclore. E para haver acção deve haver conflito. Tratando-se de um texto dramático, os conflitos já existem e a acção está suscitada.”
O elenco foi pensado para as personagens de Tchékhov e escolhido em função das características interpretativas dos bailarinos mas também de acordo com a exigência etária de Treplev, Trigorine, Arkadina ou Nina. Se não há uma única fala a escpar-se da boca dos bailarinos, o texto corre em paralelo na cabeça de Victor Hugo Pontes à medida que a peça avança, numa correspondência precisa entre a obra de Tchékhov e a dança que vemos diante de nós. É precisamente esse sentido narrativo que o coreógrafo faz por sublinhar, ao sentir que a dança contemporânea o dispensa quase em absoluto. “No ballet clássico há a historinha, há o libreto”, compara, “mas na dança contemporânea raramente isto acontece ou, pelo menos, com este tipo de precisão. Parte-se normalmente de texto, extrai-se a emoção desse texto e a partir daí constrói-se um objecto independente.”
Victor Hugo não quer, no entanto, prescindir dessa independência. Está apenas a guardar como alicerces a estrutura narrativa e as personagens de Tchékhov, deixando depois que das personagens vá emergindo uma série de imagens que tanto remetem para o clássico teatral como exigem uma releitura longe de qualquer mimetização. Uma observação atenta não deixará de descodificar a relação turbulenta e temerária de Treplev perante a criação, por oposição a uma cultura aceite, oficializada, antecipadamente carimbada com o selo de reconhecimento impressa em Trigorine, nem deixará de farejar os amores de Nina e de Arkadina. A herança tchekhoviana na peça de Victor Hugo está toda aqui: na reflexão sobre o acto criativo, enquanto impulsionador e cobiçador de futuro; nos corpos que se procuram rodear de desejo e amor.
“O Treplev tenta fazer uma quebra em relação àquilo que era instituído – a rotina, o preconceito, o quotidiano em cena – e, de certa forma, transformar as coisas numa abstracção”, considera o coreógrafo. “É muito curioso porque é isso que acabo por fazer com este texto do Tchékhov, ao tirar-lhe as palavras e ficar só com os corpos.” Para a sua própria criação, Victor Hugo agarra-se ainda à crença de Nina de que as peças têm de carregar amor. “E eu acho que esta peça está cheia disso. Digo sempre que está cheia de desamor, porque gostam todos da pessoa errada. Estão todos muito disponíveis, daí o título: Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a.” O problema de cada uma delas, talvez, é que ninguém vem.
Projecção no futuro
Se Alguma Vez… encerra um curioso e atraente paradoxo no desenho do percurso de Victor Hugo Pontes. Seguindo escrupulosamente a escrita de Tchékhov mas sonegando-lhe toda a palavra, é tanto a sua coreografia que mais se aproxima do texto (tomando-o por referência primordial e constante) quanto aquela que mais dele se afasta (seguindo-lhe os passos mas recusando a palavra em absoluto). Como se víssemos e ouvíssemos o texto que, no entanto, nunca está lá. “Estou completamente dentro do texto, apesar de depois o rejeitar”, reconhece. Todas as marcações, mesmo se originadas por improvisações inspiradas por pistas do texto, obedecem a uma dinâmica imposta a longa distância por Tchékhov. “Muitas vezes”, confessa, “os bailarinos dançam a dizer as falas, exactamente para ver se a acção corresponde àquilo que está a ser dito ou se a intenção do gesto é a correcta. O texto é o meu suporte de construção para depois o rejeitar e o excluir da cena. Mas paira na cabeça deles, está presente mais do que nunca.”
A palavra subterrânea goza, aliás, de uma imagem bastante presente sob a forma de um bloco de notas (onde Trigorine aponta as histórias que recolhe) sobre o qual os bailarinos se movimentam e que, episodicamente, é remexido por um corpo que se enfia entre as folhas/linóleos e se agita, fazendo avançar a acção. Uma ideia que parte da ligação estabelecida entre a formação original de Pontes em Belas Artes e o investimento artístico na dança, uma vez que chegado ao movimento sentiu que “era como se desenhasse em tempo real – um desenho efémero que se vai fazendo e apagando ao mesmo tempo que se vai novamente fazendo”. É também uma solução dramatúrgica que respeita a regra acordada para a construção de um cenário composto em exclusivo pela matéria do próprio teatro, uma vénia ao “questionamento do teatro dentro do teatro, avant la lettre, que é já em si mesmo uma provocação” de Tchékhov e que atiça outra das inquietações do coreógrafo – a reflexão sobre o modo como se constrói uma peça, qual o seu ponto de partida e que perguntas consegue colocar. E se o faz pegando num clássico, fá-lo-á para se “projectar” e interrogar se tem de “ir atrás para conseguir dar dois passos em frente”.
Se Treplev, com a peça que apresenta n’A Gaivota, se projecta no futuro e Tchékhov fazia o mesmo com a escrita da peça (muito mal recebida na estreia em São Petersburgo, em 1896), Victor Hugo Pontes tenta ir no encalço desse mesmo gesto e convocar aquilo que ainda não aconteceu. Não é que pretenda chamar a si a inauguração de um tempo novo nas artes performativas, nem assume um papel de vidente; prefere antes a exploração extremamente plástica da peça e esta peculiar relação entre dança e teatro, entre texto ausente e movimento presente. E depois, lá para o meio, quase que por distracção, atira uma citação da música de O Carnaval dos Animais, de Camille Saint-Saëns, sobre a qual estará garantidamente a trabalhar num futuro próximo quando estrear em Junho Carnaval, uma encomenda da Companhia Nacional de Bailado. Esse futuro, Victor Hugo já o sabe, está garantido.