Meg Stuart dança com os seus fantasmas
No seu primeiro solo de longo fôlego, Meg Stuart leva para palco o corpo como arquivo de memórias, tanto da vida familiar quanto do percurso artístico. Em Hunter, de 28 a 30 de Janeiro no Teatro Maria Matos, a coreógrafa e bailarina é tanto a caçadora quanto a presa.
Haverá certamente uma quantidade generosa de estudos com certificado de respeitabilidade (daqueles que propõem uma coisa, o seu contrário e/ou a coexistência entre os dois) a defender que qualquer pessoa em modo solitário procura um imediato consolo no rádio ou na televisão. Haverá até quem defenda que a rádio ou a televisão seriam condição suficiente para eliminar a solidão de uma tal equação. Quando vemos Meg Stuart sozinha em palco, a montar este jogo em que é caçadora e presa em simultâneo, em que persegue aos círculos a sua própria cauda – “talvez fique apenas tonta com tudo isto”, ri-se –, não há nisso um acto solitário. Para a coreógrafa e bailarina, que até aqui fizera dos solos pequenos exercícios de quebra entre duas criações de fôlego (como quem limpa o palato ou põe o contador a zero para seguir viagem), Hunter é uma peça demasiado povoada para que no solo se possa entrever qualquer resquício de solidão. Hunter é o contrário disso – um corpo usado como arquivo de memórias reais e ficcionais, uma cabeça cheia de vozes, uma reconstrução de toda a sua cartografia pessoal para um palco onde, só com muita falta de imaginação, veremos apenas Meg Stuart.
“Há muito material nesta peça e estou como que a convocar vozes”, descreve ao Ípsilon. Por vezes, perfeitamente audíveis para o público, como as de Allen Ginsberg, William Burroughs ou de uma tia, misturando a história familiar que descobriu ao escavar sete gerações para trás (por sugestão de um xamã), com uma parada de artistas que a ajudaram a moldar o seu movimento. Outras vezes, pouco descortináveis, mas podendo implicar referências mais ou menos assumidas a Jonas Mekas, Yoko Ono, Laurie Anderson, Trisha Brown ou Miranda July. Hunter “funciona como uma série de auto-retratos”, começando por uma colagem de imagens, cut ups e dispositivos visuais que Stuart utiliza para construir o mapa sobre o qual dançará mais tarde. Num certo sentido, a peça está resumida nessa ideia: chamar todos os possíveis passados para palco a fim de perceber de que é feito hoje o movimento de Meg Stuart e aceder-lhes sem um nexo evidente. “Ao longo dos anos, trabalhei com muita gente, com o vocabulário de outros, e moldei o seu material e os seus movimentos”, analisa. “Agora, estava curiosa, depois deste longo período, de perceber como é que eu me movia e como é que todos eles influenciaram esta viagem que tenho feito com a minha obra. Senti que enquanto tenho energia e interesse em actuar era uma boa forma de colocar em perspectiva a [sua companhia] Damaged Goods e o meu processo criativo.”
Hunter é Meg Stuart a colocar-se no plano do seu próprio discurso. Há muito que pensa e define o corpo enquanto recipiente de memórias, mas nunca antes tinha levado tão à letra e tão ao extremo essa convicção. Olhando para o seu corpo e para os seus movimentos como um arquivo, decidiu aumentá-lo e aprofundá-lo o mais possível. “Comecei a falar com os meus pais, a ver fotografias deles, a desenterrar a história familiar e as aspectos ficcionais que me interessavam, a pensar nos meus heróis culturais, artísticos, coisas de que gostava quando era mais nova, música que me influenciou…”, e tudo se foi sobrepondo num amontoado de pistas que dispõe livremente em palco.
Explosão de narrativas
Em Built to Last, a criação anterior de Meg Stuart, era já o arquivo que a obcecava. Mas, nessa altura, era no seu arquivo musical que estava sintonizada. Ao passar para o domínio pessoal, a coreógrafa identifica uma possível resposta a essa peça anterior, uma outra forma de escavar para dentro à procura de perceber-se melhor. Foi nessas escavações que Stuart se viu diante de um diário filmado do cineasta lituano Jonas Mekas, “um vídeo estranho sobre a importância de mudar de opinião e em que ele conta uma história sobre a Paris Hilton, dizendo que acredita nela e gosta da forma como ela fala da mudança”. Meg Stuart ficou presa a Mekas, começou a seguir as suas publicações e o realizador tornou-se “uma espécie de padrinho, alguém que ajudou a ligar a peça”, autorizando inclusivamente o uso do áudio dessa entrada diarística em que disserta sobre a condenação popular (e política) das mudanças de opinião, defendo-as como sintomáticas de um carácter saudável. “O mal não está na mudança”, repete Stuart, “está na ausência de mudança”.
Ao investigar a sua própria linguagem coreográfica e aquilo que lhe dá carne, Meg Stuart aceita a ideia de transformação e de incerteza quanto ao seu presente. Não por acaso, tanto quanto dar seguimento a Built to Last, Hunter é filha também dos cinco anos passados a trabalhar com o dramaturgo Jeroen Peeters no livro Are We Here Yet? sobre o seu percurso com a Damaged Goods. Ainda que Peeters a tenha auxiliado nesta “caça às memórias”, um dos atractivos da criação acabou por ser a interrupção no convencimento de terceiros (os bailarinos) dos seus movimentos, dos seus ritmos, dos seus materiais e das suas propostas – “em termos de coreografia, talvez seja uma peça mais avançada, é possível que simplificasse as coisas com os bailarinos”, diz. Hunter dispensa, por isso, a necessidade de estabelecer uma ordem que possa ser partilhada e trabalhada por outros, não nos surge preocupada em firmar um ambiente colectivo; antes corresponde quase ao mergulho súbito no pensamento caótico, aleatório e imoderado de Meg Stuart. “Não é fácil de fazer, é muito críptica e difícil de seguir no sentido em que não estou a adoptar uma narrativa”, explica. “Os americanos querem sempre contar a sua história de vida e não faço isso de forma alguma. É uma peça com muitas camadas, uma explosão de narrativas.”
Criar uma peça pessoal não implica acolher um tom confessional, mas Hunter dedica, de facto, um bloco ao registo falado que Meg Stuart nunca antes tinha experimentado, em que partilha alguns “aspectos” da sua vida, “embora sem qualquer teatralidade, de forma casual”. “É curioso o poder da linguagem quando comparado com o movimento”, espanta-se. “Podemos matar-nos três vezes em palco, mas basta dizer qualquer coisa e o efeito é outro, concretiza o desejo de uma relação pessoal por parte do público, vai de encontro a um desejo que nos ligarmos uns aos outros.” Algo que não lhe desagrada. Meg Stuart diverte-se, aliás, perante a ideia de que Hunter possa assemelhar-se a uma desmedida obsessão narcisista. Até porque à sua volta – algo de tão estranho quanto aconchegante – há sempre uns quantos fantasmas a seguir-lhe cada gesto.