O Presidente Marcelo não nos disse ao que vem
Alguém acredita que o novo Presidente possa ser uma espécie de rainha de Inglaterra?
Vamos ter, portanto, o Presidente Marcelo e o Presidente Marcelo não se sabe bem o que vai ser. Ele construiu uma campanha fofinha, tão fluida, tão aparentemente simples, tão despojada de meios que é impossível não ter sido pensada ao pormenor, durante muito tempo, de forma metódica e cerebral. Ele é, genuinamente, uma personagem de afectos, um showman que não fez qualquer esforço em ir de barco com um pescador, fazer brushing à própria dona de um cabeleireiro, engraxar os sapatos em plena Avenida dos Aliados ou falar com uma velhinha sobre os filmes de Vasco Santana como se tivesse todo o tempo do mundo. Mas é o mesmo Marcelo que abole cartazes e fanfarras, reduz a comitiva a dois carros e que não hesita em varrer a direita onde nasceu e cresceu para debaixo do tapete. Este é o personagem cerebral, que também existe, mas que ele adormeceu na campanha, por ter percebido antes de toda a gente que os portugueses estão sedentos de colo. O afecto de que ele tanto falou e que pôs os cabelos em pé a uma direita ainda mal recomposta das legislativas foi uma das mais poderosas armas políticas desta corrida presidencial.
Marcelo exibiu a sua persona como a antítese do chefe de Estado distante e só em que se transformou Cavaco Silva e excluiu Passos Coelho da sua campanha (também) por compreender que ele é a própria encarnação de tudo o que os portugueses mais detestam: a obsessão de resumir as suas vidas à mera condição estatística. Não admira que ele tenha pescado votos em todos os quadrantes políticos. Andou pelo país numa espécie de missão de paz e amor. Não fora o debate com Sampaio da Nóvoa e não se lhe teria ouvido qualquer palavra mais agreste. O próprio resumiu, de modo lapidar, a forma como lidava com todas as tentativas de confronto. “Eles (os outros candidatos) bem querem que eu me enerve, mas eu conto até cem (…) e quando chegar aos cem, a campanha acabou).” Falava o Marcelo cerebral e focado no caminho que traçou. Precisava de tempo para não ser obrigado a dizer ao que vinha, nem se comprometer com nada. “O Presidente tem de estar no centro, acima da vida política. Não deve puxar para um lado nem para o outro”, disse em Santa Maria da Feira. Colou-se ao Governo em tudo: no orçamento, nas 35 horas e até no estímulo ao consumo interno, que a direita abomina, mas que é trave-mestra da política económica de António Costa. Quem reconhece neste papel de rainha de Inglaterra a figura do irrequieto e interventivo Marcelo? Um papel que a ser cumprido desta forma poderia até mudar o próprio perfil do nosso sistema político, aproximando-o de um semiparlamentarismo, não traduzido na actual Constituição nem na prática dos ex-inquilinos de Belém.
Era quase impossível Marcelo não ganhar. Desta vez tudo o empurrou para cumprir provavelmente aquele que é o sonho de uma vida. Como se viu nesta campanha, ele tem a inteligência e a intuição que baste para vir a ser um bom chefe de Estado. Além de ter mundo e cultura, qualidades essenciais ao cumprimento do cargo. Mas, por agora, Marcelo não nos disse exactamente ao que vem.