O Antunes pega-se?
Qual é a marca dele em quem escreve? Seis escritores falam de uma influência, apontam a excelência e a fragilidade, sublinham a presença indelével da biografia na obra de um escritor que ousou revelar-se “furiosamente” e aprendeu a esconder-se num jogo que parece o de um eterno aperfeiçoamento.
“Cuidado que o Antunes pega-se”, ou talvez se apanhe, “como uma gripe”. Não estamos num romance, mas quase parece possível escutar nestas metáforas a voz que atravessa, em muitos múltiplos, os livros de António Lobo Antunes. Mais biográfica no início, mais elaborada e esquiva nos livros mais recentes, e apontando para muitas outras possíveis. Como no último, Da Natureza dos Deuses, quando através da fala de uma mulher se interpõem outras hipóteses de ser, de falar: “… felizmente nasci em Lisboa apesar de correr o risco de não ser esta, se calhar sou mais bem tratada do que esta, se calhar casei-me, se calhar toquei violino ou morri de amor por um veterinário, qual será o meu nome, gosto de Irene, não gosto de Noémia, faz-me lembrar uma colega da escola que se chamava Lucinda mas tinha tudo de Noémia, até a cova do queixo e as sardas dos braços, apontem-me uma Noémia gorda que não encontro nenhuma, a da capelista um pau de virar tripas, uma das dactilógrafas do escritório enchumaços no peito, que ela encaixa melhor convencida de que não topamos, prefiro Irene ao meu nome, ou Cândida, ou Ester, que deixam sabores diferentes na boca, o meu insonso como a palavra dióspiro ou a palavra lâmpada, pronunciamo-las para dentro, a imaginar que sim, e deitadas cá para fora monótonas, o que as fantasias enganam…”
“Cuidado que o Antunes se pega” ou se apanha “como uma gripe” podiam ser mais uns ecos dessa voz. Talvez sejam. São frases já algumas vezes ditas pelo escritor António Lobo Antunes sobre o autor António Lobo Antunes, quando o escritor se interpõe no que faz o autor, se comenta e aqui lembradas. Uma por Rui Cardoso Martins e outra por Ana Margarida Carvalho para os auxiliar descrever um estilo marcado ao qual é difícil ficar indiferente, sobretudo quando se é em simultâneo leitor de Antunes e escritor na mesma língua.
“Não se pode não ficar diferente depois de ler um livro seu”, diz Ana Margarida Carvalho, autora do romance Que Importa a Fúria do Mar. “É uma reacção parecida à de quando se lê Guimarães Rosa, por exemplo, a gente pousa o livro e continua com aquela cantilena na cabeça, as inconcordâncias das frases imperfeitas, usando o gerúndio… Com Lobo Antunes é assim, pousa-se o livro, e aquela prosa torrencial inunda-nos, persegue-nos e continua lá. A melodia, o ritmo, a ladainha, às vezes infantil, às vezes funesta, das vozes - como ele diz, ‘o meu ofício é traduzir vozes’ -, prosseguem nas nossas cabeças. É difícil de explicar, mas é quase viciante, e tem um poder quase hipnótico. A leitura de António Lobo Antunes deixa-nos sempre em estado de assombro, ou de incómodo, fica-nos, nem que seja, uma emoção puramente estética. Julgo que foi o próprio que disse, mas aplica-se à sua obra: os livros são coisas que se apanham, como uma gripe.”
Aí está a metáfora, a característica mais destacada quando se fala da marca literária de Lobo Antunes numa altura em que o escritor de 73 anos acaba de publicar um dos seus romances mais poderosos, 37 anos depois de se estrear com Memória de Elefante, em 1979, e em vésperas de se apresentar na competição do Festival de Cinema de Berlim (de 11 a 21 de Fevereiro) Cartas da Guerra, o filme de Ivo Ferreira, que adapta o livro D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra. Publicado em 2007 pelas duas filhas mais velhas do escritor, reúne as cartas do então alferes António, com 28 anos, à sua mulher Maria José. No teatro, regressa a peça António e Maria, uma produção do Centro Cultural de Belém estreada em Maio do ano passado e desde 14 de Janeiro no Teatro Meridional, em Lisboa. Interpretada por Maria Rueff, com dramaturgia de Rui Cardoso Martins a partir de textos de Lobo Antunes, recria em palco algumas das personagens femininas mais fortes do escritor, com sublinhado para o seu trágico-cómico desespero doméstico. Tudo isso quando estão escritos 26 romances e as suas crónicas reunidas em cinco volumes.
A marca
Que escrita é essa que “se pega”? Qual a sua principal marca? Que influência exerce em quem escreve? Porque é que a obra dificilmente se demarca da biografia do autor, suscitando reacções apaixonadas entre o elogio e a crítica feroz? Porque é que se fala de uma espécie de duplo feito daquele que cria e do que fala da sua criação. António Guerreiro, numa crónica publicada neste jornal, falava do escritor como de alguém que reclama a si uma “concepção teológica da criação literária” sempre que dá uma entrevista; de alguém que fala de si – autor - como que “mediado por uma divindade”, fazendo do acto criador um mistério a que parece alheio. “Tenho um medo permanente de isto ter acabado”, afirmou Lobo Antunes numa entrevista pouco antes dessa crónica. “Isto” é o que motiva a escrita. Depois disso já publicou um romance que tinha concluído por essa altura – Da Natureza dos Deuses - e começara outro que há-se sair no final deste ano, como em quase todos os finais de ano. Diz-se que os seus livros estão cada vez mais fechados, herméticos, fala-se também em menos leitores. Será? E quem o lê e também é escritor? Tem entre eles seguidores confessos? Herdeiros literários?
Seis escritores portugueses, leitores de António Lobo Antunes, assumem uma influência. Mais pessoal e directa nuns casos, noutros porque se sentem parte de um colectivo ao qual a sua literatura trouxe mudanças. Pelo uso da linguagem, pela forma, pelo método, porque a sua leitura altera quem o lê, ou mesmo por um estímulo para começar. Isto é, pela tal marca literária.
“É a forma. É a forma que traz o conteúdo. E usar palavras simples, que todos reconhecemos, numa construção de sons. Muito musical, muito sinfónico, e o cuidado de nada estar mal no seu sítio, como se a escrita se pudesse partir por uma palavra mal posta. Uma palavra estraga página toda. E acho que cada página tem sempre um grande achado, uma grande imagem, uma grande metáfora”, refere Rui Cardoso Martins, o autor de E Se Eu Gostasse Muito de Morrer (2006), Deixem Passar o Homem Invisível (2009), Se Fosse Fácil era para os Outros (2012) e O Osso da Borboleta (2014). “É a metáfora. É o romancista português mais surpreendente (e desconcertante) na construção de imagens. A metáfora é porventura a competência técnica mais poderosa ao dispor de quem escreve”, diz Valério Romão, autor de Autismo (2012), O da Joana (2013) e Da Família (2014). “A escrita é torrencial, elíptica, a bruma demora a dissipar-se, as vozes sobrepõem-se, acotovelam-se, interrompem-se, desorienta-se a melodia, desconexa na partitura por momentos, para se voltar a encontrar num refrão mais adiante, no sítio exacto, no momento certo - talvez por isso António Lobo Antunes fale tanto em compor um romance, no sentido de composição. As frases desorganizam-se num delírio com nexo, um caos composto com uma mestria incrível, com um poder de abstracção e de concentração notáveis. Indistinguem-se o tempo e o espaço, ele desobedece ao princípio, meio e fim, ao habitual conceito de narrativa, à própria gramática, se for preciso”, salienta Ana Margarida Carvalho.
“A repetição de vozes e a circularidade da narrativa parecem-me pontos essenciais do seu modo de fazer. Ainda assim, define-o melhor se falarmos em ecos, em desdobramentos incessantes do que é residual num carácter (o das personagens), em pontos da sensibilidade que vão sendo pressionados com maior ou menor afinco para servir os propósitos da memória transviada, que é, no final de contas, o grande coração desta escrita”, afirma Frederico Pedreira, poeta e autor do volume de contos Um Bárbaro em Casa (2014). “É a liberdade de escrita. Uma escrita solta, luminosa, aparentemente pouco cuidada. Quando o li impressionou-me a linguagem, as metáforas, as comparações e a maneira como ele fazia a adjectivação. Por exemplo: ‘a solidão é uma escova de dentes na casa de banho’. Imagens destas…”, sublinha José Riço Direitinho, autor de A Casa do Fim (1992), Breviário das Más Inclinações (1994), Relógio do Cárcere (1997), Históricas com Cidades (2001) e Um Sorriso Inesperado (2005). “Não conheço ninguém que escreva em português de forma tão elegante e capaz de pôr em palavras o indizível”, diz Dulce Maria Cardoso, para quem, no entanto, há nos romances de Lobo Antunes uma arquitectura que não entende. Admite: “Não vou estar à procura da chave para a decifrar. É verdade que ele consegue escrever o indizível como mais ninguém, mas depois torna isso um clube fechado, como se estivesse reservado o direito de admissão. E é aí que não me identifico e sou cada vez menos leitora. O que acho mais interessante é haver camadas, conseguir chegar ao leitor mais e menos treinado. Leio os seus livros cada vez mais como uma garimpeira e de vez em quando encontro umas pepitas.”
É uma escrita colada à biografia – sobretudo nos livros iniciais e nas crónicas – que faz da sua leitura uma experiência também íntima, pessoal. “A experiência de ler Lobo Antunes serviu-me não tanto como inauguração pessoal de uma escrita diferente, mas mais como modo de validação na língua portuguesa dessa mesma diferença que já percebera em autores maiores estrangeiros”. Como Céline ou Faulkner. Autorizou-o também a “um género de liberdade expressiva que, a par de outros com modulações diferentes dessa liberdade – Jorge de Sena, Almeida Faria, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Nuno Bragança ou Rui Nunes -, facilitou e aprofundou a respiração prosódica e vocabular em língua portuguesa”. É como “uma canção íntima”, continua, e é na “fidelidade” de Lobo Antunes a essa canção, que, segundo Pedreira, se jogam os pontos “mais fortes e ao mesmo tempo os mais fracos da sua escrita”. Ou seja, “um traço inigualável e extremamente apetecível – quando a música não encrenca, geralmente nos livros maiores – ao olhar guloso do leitor paciente que, se tiver a particularidade de ser também escritor, não raras vezes acaba por se achar na obrigação de se desenvencilhar da sedução dessa escrita.” E conclui: “A biografia do autor, mesmo quando espicaçada pelo fulgor verbal, não dá para tudo. É importante parar uns tempos e sobretudo desconfiar se a mão vai em piloto automático. A escrita indica antes de mais, cisão, deslocamento íntimo, e não deve soar à revalidação de competências.”
Com Lobo Antunes, mais uma vez sobretudo no inicial, estamos numa espécie de subgénero actualmente com muitos adeptos, o da autoficção, e onde se cruzam poesia, ficção, ensaio, memória. Com ele, sobre ele, andamos sempre entre autor e escritor, criador e personagem, confundindo-se tantas vezes porque um e outro são também, outras quantas vezes, indissociáveis. “Se eu não tivesse lido os livros do Lobo Antunes duvido que tivesse começado a escrever. Os livros do Lobo Antunes abriram-me um bocado essa janela de que podemos falar de nós, e quase abertamente”, diz Direitinho. A influência pode estar também numa decisão sem dúvida, a de que “toda a escrita (a minha) tem de ser bela, para além de funcional. E que não pode haver concessões em relação a isso”, afirma Valério Romão, autor de livros onde a experiência do “eu” surge romanceada num exercício de autobiografia, no entanto, distinto do de Lobo Antunes, porque as suas biografias não são confundíveis. “É impossível dissociá-lo” – refere Romão sobre o autor Antunes – “da experiência da guerra colonial ou da prática da psiquiatria. Estas duas vivências marcam indelevelmente a escrita, seja nos romances que se atêm de forma mais vincada à biografia (Memória de Elefante, Os Cus de Judas), seja naqueles que menos parecem ter como suporte a experiência vital (Que Farei Quando Tudo Arde, A Morte de Carlos Gardel)”.
E se imaginássemos toda a sua obra como o grande romance – ou autoficção - de Lobo Antunes? Parece uma pergunta subjacente. Para Frederico Pedreira, a questão da biografia não só é inseparável da obra antuniana - como do que entende como literatura, seja de que género for. “Agrada-me quando numa escrita com ambições literárias se nota a espécie de bicho estranho que o autor naquele momento é. Melhor é quando essa transparência (que não tem nada a ver com biografismos ou realismos, mas sim com a mão do autor – as suas tremuras e nervuras no diálogo com o suporte criativo a que se propõe) se deixa entrever sem pejo. No aspecto mais ou menos bizarro da vida do outro -- a do autor trasvestido na escrita, que se mostra na sua transfiguração estilística -- poderei movimentar-me melhor, com novas luzes, no aspecto da minha.”
Dulce Maria Cardoso elabora de outra forma: “Só chegamos ao outro mostrando-nos” e foi essa “vontade furiosa de chegar ao outro, uma fúria de se rasgar e mostrar” que encontrou no momento em que leu pela primeira vez António Lobo Antunes. A autora de Campo de Sangue (2001), Os Meus Sentimentos (2005), O Chão dos Pardais (2009), O Retorno (2011) e das antologias de contos Até Nós (2008) e Tudo São Histórias de Amor (2014) descobriu Lobo Antunes na mesma altura em que leu José Saramago. “Alguns amigos indicaram-me os dois. Falava-se em novos escritores portugueses e eles eram coincidentes nesse tempo. Interessei-me pela ficção de Saramago e pelo estilo de Lobo Antunes”, conta. O primeiro que leu de Lobo Antunes foi Os Cus de Judas (1979) e entre esse – ou esses primeiros - e os mais recentes encontra uma diferença abismal: “Acho que já estava tudo nos primeiros - o poder de síntese, as metáforas -, mas em bruto, menos trabalhado. Ele foi apurando. É exímio nas metáforas. Do ponto de vista formal, não encontro nada fora do sítio”, afirma, antes de falar em possíveis influências, ou de se saber o que a separa, por exemplo, neste caso, do escritor Rui Cardoso Martins, que adaptou recentemente Lobo Antunes para o teatro e o releu com outro olhar. “É verdade, os livros que o lançaram são muito autobiográficos. Um escritor sem memória não pode escrever. Não há criação literária sem memória”, acrescentando que o que mais o influenciou o nele “foi o método e não ter medo de entrar nos assuntos”, mesmo os mais dolorosos e talvez por isso pessoais. Dulce nunca falou com Lobo Antunes. Cardoso Martins é próximo do escritoe e nesta conversa não esconde a cumplicidade pessoal, “o privilégio” de assistir à sua oficina onde destaca “o profundo grau de concentração” que ele atinge, “desde aquelas formiguinhas minúsculas”, quando escreve a primeira versão em antigas folhas de receita do Hospital Miguel Bombarda, onde foi médico, “até ir arredondando a letra e transformando aquilo, sempre a cortar, a limpar. É a escola do cortar”.
A oficina
É essa oficina que lhe permite “aperfeiçoar o uso da linguagem de uma forma extraordinária”, salienta José Riço Direitinho, que lhe admira sobretudo “a confusão de vozes”, desde o primeiro livro que leu, Memória de Elefante. E cada vez mais. “A uma primeira leitura parece sempre a mesma voz, mas é polifónico… E de as histórias terem sempre várias perspectivas. Isso é talvez o que acho menos conseguido, mas também não sei se é menos conseguido. Os livros dele não são para uma leitura à superfície. Nos primeiros quatro havia a tal literatura do eu, quase exposto. Mais tarde começou a esconder aquilo tudo e a transferir muita coisa para as personagens. Nos últimos livros já não é tão descarado nessa auto-exposição. É sempre ele, mas está tudo coberto. Nos primeiros não, e os primeiros foram os que chocaram mais. O Fado Alexandrino (1983) é talvez aquele onde dá o salto. É um livro diferente dos anteriores, quase o começo do que vem a seguir.” Antes de O Manual dos Inquisidores (1996), o livro preferido, dos que leu, de Dulce Maria Cardoso, um dos preferidos de Valério Romão, juntamente com A Morte de Carlos Gardel (1994). “São romances muito bem estruturados, que não fazem parte de trilogias, que abrem e encerram em si próprios. E destaca Álvaro, uma das personagens de A Morte de Carlos Gardel. “É um autêntico tratado de composição: conseguimos sentir-lhe a derrocada interior sem nunca ver os fios pelos quais se move”, conclui o autor de Da Família.
Ana Margarida Carvalho e Rui Cardoso Martins gostam do último, Riço Direitinho vai buscar As Naus (1988), “não foi bem aceite, mas é um grande livro”, e O Auto dos Danados (1985), ambos pela liberdade narrativa e de linguagem. Mas O Manual dos Inquisidores é também um dos romances que Frederico Pedreira destaca na obra de Lobo Antunes. Também com A Morte de Carlos Gardel, Memória de Elefante, os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno (1980), “precisamente pela ruptura estilística que estes livros deixam antever, e que não é plástica – como já me parece em livros recentes – mas óssea, fulgurante, própria de um homem que não se esquece que para seduzir os outros com o sangue da biografia – por mais efabulada que ela seja – é preciso ter algo que sangrar”, justifica. Há um porquê? implícito, “uma pergunta que o aspecto geral da obra, se for boa, nos sugere”, continua. Nesses livros, com esse porquê, “há busca de um homem que se escuta, cheio de tiques, manias e miopias de percepção” e que “ainda está muito longe do fim”.
Rui Cardoso Martins lembra que foi Dinis Machado quem sugeriu o título Fado Alexandrino, “o primeiro livro – e agora é Riço Direitinho que fala – em que ele se deixa ir e a coisa parece ganhar fôlego”. É o livro “depois dos livros jovens”, talvez que os mais influenciaram os escritores que se seguiram, incluindo o próprio Direitinho, que quando o leu sentiu o que Dulce Maria Cardoso descreve como uma das funções da literatura: “diminuir a solidão” – e de que Lobo Antunes parece ir esquecendo enquanto praticante literário, depreende-se das palavras da escritora. “Nem que seja por momentos”, continua Dulce Maria, “o autor sé é autor quando existe leitor e a arte é para chegar ao outro e diminuir a solidão”, mesmo se a ideia de outro não exista quando se cria ou sem tentar fazer concessões de gosto. Não é isso. É saber que há a “inteligência do outro”. “Li-o e senti que também podia”, refere Riço Direitinho, a liberdade que aquilo me dava para eu falar do que sentia e que na altura eram problemas de adolescência, o facto de ser tímido, de não conseguir dizer certas coisas. O Lobo Antunes funcionava mesmo em termos psicológicos”. Ri. “Ler um livro de ALA era um grande alívio, aqueles primeiros livros dele…”
No DN Jovem, onde começou a escrever com muitos escritores da sua geração, José Riço Direitinho fazia “muitas coisas a la Lobo Antunes. Era irresistível”. Foi durante muito tempo. “Com o Saramago mostrou-me que podia quebrar regras, e no caso dele, revelar-me”. E ele viu-o e recomendou-o a uma editora. Foi assim que publicou o primeiro livro, na Asa. E fala da mancha na página, outra marca de Lobo Antunes que muitos “imitaram” ou seguiram, incluindo ele. O corte da frase, numa palavra, num diálogo. Ele não era o único a fazê-lo em português. “A brasileira Hilda Hilst [1930-2004] tem coisas assim. Eu fiz isso em Um Sorriso Inesperado, todas as minhas histórias aí têm a mancha dele, a página cortada. Dulce Maria Cardoso também refere essa mancha, admite uma influência. “Em Os Meus Sentimentos isso aparece um pouco porque é um livro sobre memória que me surgiu assim, de forma fragmentada., mas o conteúdo não tem nada a ver com o universo de Lobo Antunes. Li-o numa altura de formação, como li muitos outros escritores, e não posso tirar o eu li da cabeça. Isso não me preocupa no momento da escrita, preocupo-me sim em encontrar um registo para o que estou a fazer.” Em O Retorno, onde se poderia, porventura, falar de um encontro pelo menos temático, Dulce salienta que o facto de estarem em lados opostos de uma realidade. “Pensei em muitos escritores poe essa altura, mas não eme ALA; apesar de termos partilhado o mesmo território geográfico, a realidade dele não é a minha. A minha realidade é doméstica, a dele é o contrário, era o soldado. Eu fui desterrada aqui em criança e não lá, um adulto. África, para mim era casa.”
A propósito da influência pessoal de Lobo Antunes, Riço lembra como conheceu José Cardoso Pires. Foi em Frankfurt, em 1998. Ele disse: “Esse gajo é um epígono do António.” Salienta o tom de desprezo. “Só tinha lido as minhas coias no DN Jovem. Depois leu os meus livros e deixou de ter essa opinião. A influência no início passa quase sempre por uma imitação de estilo, ou por uma imitação de alguns tiques estilísticos. O assunto pode ser completamente diferente, Mas falo de influência, não de imitação. A imitação é outra coisa e não tem valor.” Ana Margarida Carvalho refere a “impossibilidade de ficar indiferente perante a prosa de Lobo Antunes”, porque “ele tem essa espécie de ouvido absoluto para apanhar as nossas fraquezas lexicais, as nossas redundâncias e lugares comuns, ridículos e estafados” que se manifestam nos leitores que também são escritores. “Acredito que os escritores são muito mais aquilo que leram do que aquilo que escrevem. Por isso a enorme tentação ou o enorme atrevimento de verter para o papel essa melodia que nos fica depois de ler os seus livros. É como se, acabado o livro, ele nos continuasse a ser ditado por dentro, e nós, leitores, ficamos necessariamente em estado de influência… Claro que não pode quem quer, mas quem consegue. E o que sai são umas reles aproximações…” Valério Romão admite uma influência em duplo sentido. “Ainda há Lobo Antunes em mim, felizmente agora em níveis pouco mais que homeopáticos – e não refiro isto por menosprezar a qualidade e a influência, mas por não achar salutar a ideia de estilo que ‘faz escola’”, e conclui: “não tenho dúvidas de que seremos muitos muito devedores de Lobo Antunes. Colocou-nos a excelente dificuldade de almejar a excelência.”
Quando em 2014 publicou o seu livro de contros, Frederico Pedreira ouviu várias vezes a observação de que “sabia a Antunes”. Não refuta a ideia. “Gostava de acreditar que a influência de Lobo Antunes noutros escritores tem sido do mesmo género que a minha: enquanto sugestão de liberdade e como certificação de modos de fazer em que prevalece a diferença – absolutamente intrínseca ao compromisso do autor com o seu meio de expressão --, por mais que esses modos pareçam estar rodeados de contra-indicações epocais.”
Rui Cardoso Martins refere outro tipo de influência: a do incentivo pessoal. Foi Lobo Antunes e Cardoso Pires – que nunca conheceu – quem o incentivaram a escrever outras coisas além das crónicas que publicava semanalmente no Público. “Um dia ele chegou ao pé de mim e disse-me ‘Boa noite, escritor’. Foi num sítio público e fiquei nervoso. Depois disse que eu era escritor e tinha de escrever”, conta, acrescentando que o leu desde Memória de Elefante. “Ia lendo, como ia lendo os russos. Tudo o que é bom influencia. Aprendi o modo como observa o país, mas somos diferentes. Gosto do modo como capta o se humano, como consegue entender as mulheres. É verdade, há escritores que se pegam e outros que não se pegam. Ele, de facto, pega-se. Às vezes acontece, mas acho que não me aconteceu ainda, e se me acontecesse, enfim, seria bem-vindo. Mas não é assim que escrevo.” Faz uma pausa. “O António é uma grande figura e um grande escritor. Se eu não fosse herdeiro do António não seria herdeiro de coisa nenhuma.”