Encenação teatral em queda: as várias faces de Marcelo
São inúmeras as atitudes, posicionamentos e comentários que denotam de que lado está Marcelo Rebelo de Sousa.
Se qualquer candidato/a à Presidência da República, apresentando-se por si próprio ou em nome de partido(s), não pode ver diminuída a legitimidade da sua candidatura, chama especial atenção a ambiguidade de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) que, segundo o próprio, com a sua candidatura estaria a responder à ‘chamada’, ficando no ar se terrena ou divina! Sim, porque se apresenta e é apresentado em certos media como ‘predestinado’ para o mais alto cargo da Nação, como que imbuído de um ‘desígnio’, de uma ‘missão’!
Deixando agora de parte o seu passivo percurso político antes do 25 de Abril de 1974, relevam no pós-25 de Abril as suas responsabilidades partidárias no PSD a nível nacional, o seu fracasso eleitoral autárquico pelo PSD em Lisboa, apesar do mergulho sensacionalista no Tejo, o seu envolvimento em diversas campanhas por este partido inclusive nas últimas legislativas, além de ter legitimado grosso modo as austeritárias políticas de Passos Coelho/Paulo Portas. Que conversão política foi esta a ponto de MRS, candidato da direita, se declarar candidato independente?
Com efeito, MRS, tendo sido Presidente do PSD, comentador “explicativo” das medidas dos governos PSD/CDS do Passos/Portas, recebe e ‘agradece’ o apoio do PSD/CDS mas apresenta-se como independente, proclama-se “a esquerda da direita”, sem adversários (!) e árbitro acima de partidos à esquerda e à direita, quando o seu lugar é obviamente de direita e parte concorrencial desta competição nas eleições presidenciais. Ou será que já se crê Presidente antes do escrutínio eleitoral? É que MRS mostra ser um versátil artista de teatro com máscara (persona), representando diversos papéis na fachada: se, enquanto comentador, aliás sem contraditório, se constituía um sedutor entertainer social e político com suas ‘análises’ jurídico-políticas entremeadas de expressões e palpites de senso comum no reino da superficialidade, hoje, ao ser seriamente confrontado nos debates, primeiro por Marisa Matias e depois por outros candidatos, em particular, por Sampaio da Nóvoa, as máscaras da sua persona têm vindo pouco a pouco a cair. Emergem à luz do dia clamorosas contradições de uma personalidade camaleónica, imprevisível e não confiável, a discrepância flagrante entre as suas práticas e posicionamentos políticos no passado remoto e mesmo recente e suas narrativas ideológicas ‘abrangentes’ e acomodatícias a cada momento e ao interlocutor em causa. Ao virem nos últimos dias à campanha Passos Coelho e outros responsáveis do anterior Governo e do PSD, tornam-se cada vez mais visíveis os verdadeiros objetivos da sua candidatura e os interesses dos reais bastidores das forças económicas e políticas que a suportam na sombra com a expectativa de posterior pressão revanchista perante a nova configuração política do Governo PS com apoio parlamentar do BE, PCP/PEV.
Como sociólogo vejo-me na necessidade de socorrer-me do modelo dramatúrgico concebido por Goffman e desenvolvido por Giddens, que, para além de aplicável na vida quotidiana, é eminentemente útil para interpretar a performance representacional no campo político entre a fachada e adereços pessoais dos seus protagonistas (personal front, front region) e os bastidores (backstages, back region), locais onde as máscaras são retiradas ou abandonadas. Aplicado ao caso, se MRS sentisse verdadeiramente os dramas do povo português não se colocaria ao lado dos credores e da política de austeridade de Passos/Portas. Com efeito, MRS, ao nível do palco teatral, ao afirmar ser o candidato dos afectos, negando tal qualidade aos outros, fabrica os ‘encontros’ e ‘faits divers” de campanha, com cenários alimentados pelo alegado filão de afectos, já desbravado por outros políticos e retomado agora por MRS, de resto iniciado na própria apresentação da sua candidatura: oferecer um “sorriso” ou verter uma “lágrima” a cada português que o necessite! Mais, arroga a alegada estratégia dos afectos como um exclusivo pergaminho seu, quando a racionalidade afectiva, conceptualizada pelo clássico Max Weber, é susceptível de ser partilhada e vivida pelo comum dos mortais e, certamente, por outros candidatos/as. MRS constitui a máxima expressão da duplicidade entre a fachada representacional e os interesses da retaguarda invisível e invisibilizada, o que se pode constatar nas sucessivas operações de marketing que certos media e ele próprio têm vindo a encenar: pequenos distanciamentos tácticos ao radicalismo ideológico de direita de Passos/Portas que lhe valeram o epíteto de catavento atribuído por Passos Coelho; o condicionamento dos seus potenciais concorrentes no campo da direita; a visita à festa do Avante e, na (pre)campanha, o seu almoço com marmita aparentando frugalidade ‘operária’; à semelhança do PAF, a preocupação de não colagem ao anterior governo Passos/Portas, dispensando tacticamente na campanha a sua co-presença física mas reclamando agora a de ‘barões’ do PSD quando a eventual vitória da eleição à primeira volta é periclitante; o “elogio” tacticista ao governo de António Costa para captar votos na esquerda, assim como o silogismo redondo de que o povo o conhece e, portanto, ‘sabiamente’ votará nele porque ele também afectivamente ‘sente’ o povo; o populismo demagógico sobre as ‘dispendiosas’ campanhas de outros candidatos, sem nunca ter levantado a voz com os astronómicos gastos entre 2 e 3 milhões de euros por parte do seu partido e de Cavaco Silva e, sobretudo, pretender ignorar a vantagem da sua personagem enquanto ‘produto’ fabricado pelo poder de certos media; e as tiradas (pseudo)estadistas ao negar-se adversário de seus adversários, assumindo altaneiramente como seu ‘adversário’ os problemas do país!
E as práticas de MRS? São inúmeras as atitudes, posicionamentos e comentários que denotam de que lado está MRS: o repúdio da fiscalização sucessiva do Orçamento de Estado porque punha em causa a negociação com credores e a credibilidade de Portugal (!); o reforço do aval dado pelo Governador do Banco de Portugal e Cavaco Silva sobre a estabilidade do BES; a abertura a igual tempo de debate para todos os candidatos mas tratando paternalisticamente candidatos como Tino de Rans e transfigurando-se agressivamente perante as desmontagens das suas contradições por parte dos principais adversários; o “nin” sobre os direitos das minorias na esfera da sexualidade e na adopção de crianças por casais homossexuais; o posicionamento patético e cambaleante, humorizado por Ricardo Araújo Pereira, sobre o aborto; a subscrição da petição “Direito a nascer” com propósitos penalizadores para as mulheres.
Há que recolocar MRS no seu próprio campo da direita, porque a ‘esquerda da direita’ é uma invenção fantasiosa e eleitoralista de MRS para ‘caçar’ agora votos nas esquerdas! E, sendo altamente influenciável, ziguezagueante ou mesmo malabarista, se Marcelo fosse Presidente, que garantias teríamos de termos um Presidente suprapartidário, isento, defensor dos princípios da Constituição num tempo novo com a actual configuração política no parlamento? E que garantias teremos de ele ser capaz de sobrepor os interesses nacionais e patrióticos à lógica neoliberal e creditocrática dos sacrossantos bancos e mercados/agências de rating (preocupação central de Cavaco Silva!), assim como ser vigilante perante peritocratas de instituições supraestatais não eleitas como o BM, a OMC, o G20 e, em particular, da Troika (BCE/FMI/UE), dado ter concordado a traço grosso com políticos e tecnocratas subservientes, 'domésticos' e domesticados como o foram Passos/Portas/Maria Luís Albuquerque?
A garantia patriótica e de defesa do país e dos direitos sociais dos portugueses/as, sobretudo dos mais vulneráreis e desprotegidos podem dá-la outros candidatos/as da área da esquerda, nomeadamente António Sampaio da Nóvoa, mas não Marcelo Rebelo de Sousa, demasiado interligado com figuras de grupos económicos com fortes interesses financeiros. Por isso, Sampaio da Nóvoa, emergindo como o candidato mais bem posicionado para disputar a segunda volta, será firme em prol de todos os cidadãos/ãs independentemente do seu posicionamento político-partidário. Ele será certamente a garantia da defesa do país e do Estado Social, porque tem um historial de cientista social comprometido, pugna pelas formas de democracia participativa, mas não diaboliza os partidos, fundamentais numa democracia representativa, e sobretudo corporiza politicamente o ponto de convergência e junção das várias esquerdas e dos cidadãos/ãs sem partido, desiludidos com tradicionais partidos do poder, nomeadamente com a política devastadora do PSD/CDS.
Sociólogo, professor universitário