O perfeito amor, segundo Highsmith

A visão da desconhecida desencadeou em Patricia Highsmith sentimentos tão intensos que se pôs a escrever O Preço do Sal.

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Carol é a única obra de Highsmith onde não existe violência física explícita JACQUES PAVLOVSKY/SYGMA/CORBIS

Não se sabe ao certo se foi no Macy’s ou no Bloomingdale’s, dois dos mais populares e elegantes armazéns nova-iorquinos que Patricia Highsmith, nessa altura com 27 ardentes anos, viu entrar uma loura com um casaco de peles que captou a sua atenção. A mulher, com a elegância – e a fria distância – de uma heroína hitchcockiana queria comprar uma boneca para a filha. Highsmith estava ao balcão a trabalhar temporariamente na secção de brinquedos, durante a época de Natal, para pagar a terapia que andava a fazer por não se sentir confiante em relação a Marc Brandel, um romancista com quem era suposto casar. Estava-se em 1948 e ela tinha acabado O Desconhecido do Norte Expresso, que seria publicado no ano seguinte. A visão da desconhecida desencadeou sentimentos tão intensos que se pôs a escrever O Preço do Sal (título original de Carol), a história de Therese Belivet, uma cenógrafa de dezanove anos que vive sozinha em Manhattan e se apaixona por Carol Aird, uma esposa suburbana abastada e mãe de uma filha. (Highsmith obviamente, não casou com Brandel nem com ninguém e, pouco depois, iniciou um tórrido romance com Virginia Kent Catherwood, uma riquíssima socialite de Filadélfia, com um enorme apetite sexual, o que lhe forneceu experiência para a delineação deste romance.)

Carol é mais velha que Therese, sofisticada, misteriosa e aventureira. Therese tem um namorado, Richard, por quem não está apaixonada, como nos afiança repetidamente a autora, e tem consciência de que está cada vez mais deslumbrada por Carol que a leva para sua casa e a seduz sem esforço. A primeira parte do livro é um conto de fadas o que, nas mãos da senhora Highsmith, quer dizer um encantamento, um sortilégio. Therese só se sente “viva” junto de Carol – quando está longe dela fica gelada, petrificada, absorta, desinteressada de tudo, incluindo, obviamente de Richard, de quem se afasta cada vez mais – e não se cansa do estado quase sonâmbulo que experimenta junto de Carol, a qual, quando se conhecem, está a meio de um processo de divórcio litigioso pela guarda da filha. Para fugirem da complexa teia cada vez mais apertada e insustentável das múltiplas relações - namorado, marido, filha, amigos e amigas, incluindo Abby, a anterior amante de Carol - decidem partir para uma viagem de carro pelos Estados Unidos, numa espécie de fuga ao modo de Thelma e Louise, mas sem o pathos do filme. Devoram quilómetros, bebem cocktails, fumam, vagueiam, fazem amor – uma epifania para Therese – e tentam escapar quando percebem que Harge, o marido de Carol, colocou um detective privado no seu encalço com o propósito de reunir provas do “crime” e, assim, ganhar o processo pela custódia da filha. Há episódios rocambolescos, fugas nocturnas, uma arma na bagagem, separações, drama e um estranho final aparentemente feliz.

Mais do que uma história de amor, Carol é a descrição de um enamoramento que se arrasta ao longo de duzentas e tal páginas com os ingredientes próprios, isto é, encontros e desencontros, ansiedade e realização, desconfiança e certezas, vitórias e derrotas, felicidade e infelicidade. Poderia ser, apenas, mais um conto romântico de sedução, paixão e arrebatamento se não fosse o caso de ter sido escrito num momento particularmente sinistro, quando as relações amorosas e eróticas entre pessoas do mesmo sexo eram, ainda, um assunto tabu e uma “abominação aos olhos do mundo”, tal como é mencionado por Richard que destila o mais abjecto veneno na carta que envia a Therese quando se apercebe da relação entre as duas mulheres. Highsmith acabou por se escudar atrás do pseudónimo Claire Morgan, quando o livro foi publicado, em 1952 e, num posfácio de 1989, refere que aquele era um tempo em que os “bares gay em Manhattan ficavam em becos e portas escuras”. Viviam-se também os dias triunfantes e ignóbeis do McCarthyismo, da delação e da paranóia persecutória contra comunistas, gays e outras tendências “desviantes”.

Sabe-se que Highsmith se apaixonou muitas vezes por muitas mulheres, “mais do que o número de orgasmos dos ratos”, de acordo com as suas próprias palavras. No entanto, não apreciava as qualidades dos seres humanos em geral e preferia sempre, dizia ela, a companhia de animais. O seu temperamento, notabilizado em alguns episódios anedóticos que lhe granjearam a fama de megera – também era racista e anti-semita – parecia estar de acordo com os seus personagens, psicopatas e violentos. A sua ironia caustica e o seu humor negro consubstancia-se na figura de Ripley, esse assassino talentoso e cheio de encanto – totalmente amoral – que a autora arrastou ao longo de cinco thrillers psicológicos que seduziram os leitores e cineastas como René Clement e Wim Wenders. Carol é a sua única obra onde não existe violência física explícita, embora a obsessão de uma pessoa por outra esteja sempre presente, uma característica que sustenta a trama de todos os seus livros.

Nota: Nesta edição, a tradução e a nota de leitura rigorosa e informativa de Ana Luísa Amaral – com referências a outras obras explicitamente ligadas ao tema do lesbianismo – contribuem para uma valorização e para um conhecimento mais alargado desta obra.

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