}

O “ponto de situação” de Nuno Cardoso é em cima do palco

O director do Ao Cabo Teatro regressa como actor a Subterrâneo, 20 anos depois. É o início de uma série de trabalhos com outros criadores em que o veremos pensar a sua carreira. Agora com encenação de Luís Araújo. Nos próximos tempos com Meg Stewart, Paulo Ribeiro ou Àlex Rigola.

Fotogaleria
A proposta de Cardoso é confrontar-se com o seu passado, com o trabalho como actor e encenador. Para isso, vai colaborar com os coreógrafos Meg Stewart e Paulo Ribeiro e com o encenador catalão Àlex Rigola ao longo dos próximos dois anos Marco Duarte
Fotogaleria
O ciclo A vida, a morte e Canas de Senhorim não fará Nuno Cardoso abandonar a sua actividade como encenador e director do Ao Cabo Teatro Marco Duarte
Fotogaleria
A proposta de Cardoso é confrontar-se com o seu passado, com o trabalho como actor e encenador, pondo-se a si em evidência Marco Duarte

Há 20 anos, Nuno Cardoso era “um puto” a começar a ser actor. Há 15 estava a tornar-se o encenador do momento em Portugal. E há 10 dirigia o Teatro Carlos Alberto, no Porto. E, hoje, é quem? E o que será a seguir? São perguntas para as quais ainda não tem reposta, mas vai à procura delas num conjunto de colaborações com outros criadores. A primeira paragem é neste fim-de-semana e não podia tornar mais evidente essa necessidade de fazer um balanço: revisita Subterrâneo, que tinha interpretado no início da carreira.

Corria o ano de 1994 quando Nuno Cardoso chegou ao Porto para ajudar a fundar a companhia Visões Úteis. No início dessa década, tinha encontrado o teatro, no Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, quando estudava na mais antiga universidade do país. Hoje tem 45 anos e terá pela frente, pelo menos, outras duas décadas de trabalho. Poderá portanto dizer-se que está a meio da carreira. E é o próprio criador quem assume esta necessidade de olhar para trás enquanto perspectiva o que está mais à frente.

“A certa altura do nosso percurso atinge-se alguma maturidade”, avalia. Sente que está nessa fase. E são momentos como esses que pedem um balanço. “Há quem edite livros”, já Nuno Cardoso decidiu ir para cima do palco, “que é por onde tenho andado”. Chama a este momento um “ponto de situação”. Será assim nos próximos tempos, em que vamos vê-lo em palco, como intérprete, sempre a solo, num conjunto de espectáculos a que chamou genericamente A vida, a morte e Canas de Senhorim – numa referência à vila beirã onde nasceu.

A proposta de Cardoso é confrontar-se com o seu passado, com o trabalho como actor e encenador, pondo-se a si em evidência. Para isso, vai colaborar com os coreógrafos Meg Stewart e Paulo Ribeiro e com o encenador catalão Àlex Rigola ao longo dos próximos dois anos – mas sem pôr de lado a sua criação como encenador e director da companhia Ao Cabo Teatro.

O ciclo A vida, a morte e Canas de Senhorim “não é um regresso ao palco”, defende Nuno Cardoso, que não considera que alguma vez tenha saído deles. Contudo, nos últimos cinco anos, só por três vezes assumiu o papel de actor. Por duas vezes em 2010 (Filho da Europa, encenado por João Garcia Miguel e T3+1), a que se seguiu, três anos volvidos, a reposição do espetáculo de Na Solidão dos Campos de Algodão, que tinha feito em 1999, com Nuno M. Cardoso.

Foto
Marco Duarte

A primeira constatação do “ponto de situação” da carreira de Nuno Cardoso é precisamente esta: para a generalidade do meio teatral português ele é um encenador. A carreira como actor passou para segundo plano. E não é por vontade própria. Ao Ípsilon, o actor e encenador confessa: “Tenho muita vontade de fazer reportório como actor. Nem quero fazer grandes papéis, posso ser uma das pessoas do coro que entra de vez em quando e que está nos camarins."

É, todavia, com um papel central que Nuno Cardoso volta a ser actor no primeiro acto do balanço de carreira. O início do seu “ponto de situação é um monólogo e um regresso. Um regresso a Subterrâneo, criado a partir de Cadernos do Subterrâneo, de Fiódor Dostoiévski, que tinha interpretado em 1995 para a companhia Visões Úteis, que ajudara a fundar no ano anterior. “Éramos uns putos. Eu particularmente”, recorda. A encenação então feita por Paulo Castro foi “emocional e agressiva” e aquele texto tornou-se a plataforma ideal para alguém que, em início de carreira, “queria mostrar”. Hoje, o corpo “já não dá as cambalhotas” que a montagem de há duas décadas exigia, mas diz acreditar mais no texto do que naquela altura: “Vivi muita coisa entretanto."

A versão de Subterrâneo que estreia esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães – e que estará em digressão pelo menos até Setembro, com passagens por Felgueiras, Braga, Porto, Lisboa e Ovar – é dirigida por Luís Araújo, 34 anos. Contrariamente à versão de Paulo Castro, em que apareciam apenas fragmentos do texto, desta vez é usado o primeiro volume dos Cadernos do Subterrâneo praticamente na íntegra, apenas com ligeiras modificações que tentam “actualizar” algumas das preocupações filosóficas que eram levantadas por Dostoiévski a que os pensadores que lhe sucederam acabaram por dar resposta.

A montagem de Araújo tem, porém, uma opção mais radical do que a que foi feita em relação ao texto na sua forma de apresentação. O ar grave e intenso do manifesto anti-humanista de Dostoiévski é transferido para o universo das conferências motivacionais, dos life coaches e de “todos os humanistas de pacotilha que enchem auditório para dizer generalidades”, explica o encenador deste espectáculo. Para Luís Araújo, a ideia por trás deste Subterrâneo era “fazer a pior Ted-talk de sempre”, oferecendo ao texto de 1864 os instrumentos do século XXI: computadores, projectores, providenciais garrafas de água de plástico e o sempre-presente Power Point.

O pilar
Essa “actualização” muito evidente do cenário em que se dá corpo ao texto de Dostoiévski é talvez a marca mais evidente da diferença geracional existente entre Luís Araújo e Nuno Cardoso. Há 11 anos a separar os 34 do primeiro e os 45 do segundo. Mas quando se ouve a história destes dois criadores percebe-se que essa distância entre eles é suficiente para fazer uma grande diferença. Quando Nuno Cardoso interpretou Subterrâneo pela primeira vez, Luís Araújo “andava a ver o Dragon Ball”, diz, entre sorrisos.

Anos depois, os dois actores e encenadores conheceram-se e têm mantido uma intensa relação criativa desde então. A primeira colaboração aconteceu em 2004, quando Araújo, acabado de sair da escola, foi fazer a audição para O Despertar da Primavera, de Frank  Wedekind, que Cardoso encenou para o Ao Cabo Teatro. Acabou escolhido e tornou-se um colaborador habitual da companhia do Porto. Esta não é, porém, a primeira vez que os papéis se invertem: antes deste Subterrâneo, Araújo co-encenou, juntamente com Vítor Hugo Pontes e José Eduardo Silva, T3+1 (2010), em que Nuno Cardoso era intérprete.

Há, por isso, mais de dez anos de trabalho em conjunto que “viciaram” a opinião que Luís Araújo tem acerca de Nuno Cardoso. “Ele é o grande pilar da minha aprendizagem. Comecei a trabalhar com ele mal saí da escola e muito do que aprendi do ofício, em termos práticos e teóricos, foi com ele”, explica. Foi no tempo em que Cardoso era “o grande director de teatro nacional”, lembra Araújo. Uma época, no início deste século, em que Cardoso era praticamente unânime entre a crítica e fazia sucesso junto do público.

Passaram mais de dez anos e Nuno Cardoso já não é o homem de quem sempre se fala, o que até nem é algo que o preocupe, garante: “Não podemos estar sempre na moda”. O que lhe interessa é continuar a pode falar “a mesma linguagem” de Luís Araújo, por exemplo, para poder propor-se a trabalhar com alguém que não é da sua geração. Ou poder desafiar criadores como Àlex Rigola ou Paulo Ribeiro e receber de volta uma resposta positiva. “Mostra-me que continuo a ter interesse”, valoriza.

Não é, porém, preciso esperar pelo fim do “ponto de situação” que se propõe fazer nos próximos tempos para descobrir o que fará quando deixar de ser assim. "Espero ter a clarividência de perceber que aquilo que eu faço não interessa." Aí, sim, promete parar.

Foto
Marco Duarte

O ciclo A vida, a morte e Canas de Senhorim não fará Nuno Cardoso abandonar a sua actividade como encenador e director do Ao Cabo Teatro. Enquanto se pensa, tem os próximos passos da carreira já planeados. O grande teatro continuará a ser uma das suas áreas de trabalho, mantendo a sua incursão recorrente aos textos de repertório, como O Misantropo de Molière, que vai levar a cena ainda este ano. No próximo ano, Cardoso regressará aos dramaturgos russos, com Os Veraneantes, de Máximo Gorki, ao mesmo tempo que pretende visitar a primeira tragédia clássica portuguesa, A Castro, escrita por António Ferreira no século XVI.

Isto é o que está no plano. Mas entre o planeamento e aquilo que realmente acontece vai “uma grande distância”, responde Nuno Cardoso, quando questionado sobre a possibilidade de voltar a assumir um cargo de direcção de uma estrutura cultural. Não seria a primeira vez. Entre 1998 e 2007 dirigiu o Teatro Carlos Alberto, no Porto. Nos últimos anos, tem colaborado com o Teatro Municipal de Felgueiras, o que lhe tem permitido conhecer a realidade municipal, bem diferente do trabalho num teatro nacional como a que conhecia anteriormente.

“Qualquer pessoa que já o tenha feito e que dirige uma companhia ou que esteja ligado à realidade cultural e teatral portuguesa tem uma ideia ou um projecto para o sector”, defende Nuno Cardoso. Não fecha a porta a voltar a este tipo de funções. Só que esse não é o seu principal objectivo.

Sugerir correcção
Comentar