A cultura em estado de emergência

A Cultura merece e exige uma discriminação positiva que lhe garanta a capacidade de sobrevivência a curto prazo, através de medidas de urgência de reestruturação orgânica já nos próximos meses.

A inclusão de um Ministro da Cultura na orgânica do actual governo veio dar cumprimento a um compromisso programático repetidamente assumido por António Costa logo desde a sua eleição como Secretário-Geral do PS e ao longo de toda a campanha eleitoral, e a escolha de um titular com a experiência e o peso político individual de João Soares deve ser lida, a meu ver, como um claro sinal de uma relevância política acrescida para a própria pasta. Trata-se de dois passos de grande significado, mas aos quais é necessário agora dar continuidade no plano da reestruturação orgânica do sector e das dotações orçamentais que lhe serão atribuídas, sob pena de o novo Ministro se ver privado dos instrumentos administrativos e financeiros indispensáveis à prossecução de uma política cultural verdadeiramente nova.

Deve reconhecer-se que já sob os governos de José Sócrates, independentemente da maior ou menor boa vontade dos seus sucessivos ministros, a área da Cultura vinha sendo crescentemente subfinanciada, obrigando mesmo à denúncia unilateral pelo Ministério de compromissos explícitos com criadores e produtores culturais privados de todo o País, e permitindo por vezes soluções orgânicas manifestamente infelizes, de que foi particular exemplo a disparatada fusão do Teatro Nacional de São Carlos e da Companhia Nacional de Bailado na OPART. Só que mesmo essa tendência nítida anterior de investimento cultural decrescente não tem comparação possível com o modo como os quatro últimos anos de governação do PSD e do CDS lançaram o sector num estado de verdadeira catástrofe, fazendo-o praticamente implodir. A face mais evidente desse desastre, para lá do sinal evidente da despromoção da pasta de Ministério a um Secretário de Estado a título individual, foram, é claro, os cortes orçamentais trágicos impostos de imediato a todos os organismos e programas culturais – cortes esses que, tendo afinal representado um contributo absolutamente irrelevante para a contenção da despesa do Estado à escala macro-orçamental produziram, contudo, um impacto devastador num terreno já tão fragilizado, levando à desestruturação do tecido artístico português.

Uma face menos evidente desta política de terra queimada para a Cultura ocorreu porém, no plano orgânico e administrativo. Em primeiro lugar, a extinção do Ministério e a inclusão do Secretário de Estado que lhe sucedeu, a título individual, na estrutura da Presidência do Conselho de Ministros implicaram que o titular da pasta passasse a depender da Secretaria-Geral da PCM, serviço que não tutela e ao qual não pode verdadeiramente pedir contas, para o processamento administrativo dos seus actos de gestão, o que limita fortemente a eficácia e a celeridade do seu funcionamento regular. Esta situação manteve-se, em boa verdade, no actual governo, já que não foi criado um Ministério da Cultura mas apenas nomeado um Ministro da Cultura inserido na orgânica da PCM, muito embora se trate de um membro do governo com a tutela muito complexa, directa ou indirecta, de uma boa vintena de organismos. É uma solução que se pode admitir a título meramente transitório (e que, muito bem, mas contraditoriamente, não foi aplicada no caso do restabelecimento do Ministério da Ciência, por exemplo) mas que carece de correcção ao mais breve prazo, sob pena de poder vir a frustrar significativamente o cumprimento do programa do governo para esta área.

Um dos momentos mais absurdos do governo de Passos Coelho neste sector foi o anúncio da criação de um Agrupamento Complementar de Empresas faraónico que geriria a quase totalidade dos organismos de produção artística do Estado – projecto tão caricato e tão inviável que nunca chegou a ser implementado. A OPART manteve-se, mas em condições de subfinanciamento tão drástico e de indefinição programática tão gritante que continua, neste momento, sem ter sequer um Director Artístico. Vários dos demais organismos do mesmo tipo mantiveram-se com um estatuto de Entes Públicos Empresariais, mas a pretexto de que na sua maioria estes não dispunham de pelo menos 50% de receitas próprias retirou-se-lhes a autonomia financeira, colocando-os na dependência directa do Ministério das Finanças para a realização das mais elementares aquisições de bens e serviços e para a cabimentação de despesas essenciais, tornando a programação e produção de uma temporada num verdadeiro inferno quotidiano para os seus responsáveis artísticos (curiosamente há pelo menos um, o Teatro de D. Maria, em que, devido a um erro de classificação contabilística que tradicionalmente regista a participação financeira do Estado como receita própria, tal não sucedeu). E é nas Finanças que reside igualmente, a verdadeira tutela governamental do Centro Cultural de Belém ou do Monte da Lua, apesar de lhes estar atribuída a gestão de equipamentos culturais públicos cuja natureza específica escapa, como é óbvio, à compreensão da burocracia generalista daquele Ministério.

É agora preciso encontrar rapidamente para todo este sector de actividade artística directa do Estado modelos orgânicos próprios que consagrem os princípios da efectiva autonomia administrativa e financeira e da programação e orçamentação plurianuais, bem como reintegrá-los na tutela qualificada do Ministério da Cultura. O modelo tradicional do EPE, que tanto seduziu sempre os gestores generalistas de vários pendores político-partidários, talvez porque o ligeiro “perfume empresarial” da designação sugira maior dinamismo económico, não me parece a melhor solução, já que obriga a órgãos de gestão pesadíssimos e muito mais dispendiosos do que seria, por exemplo, o caso de um modelo de instituto público dotado de autonomia administrativa e financeira e gerido apenas por um director artístico e um gestor administrativo-financeiro, como sucede, por exemplo, numa grande parte dos principais teatros europeus.
Por último, o anterior governo levou a cabo na esfera da Cultura um conjunto de fusões institucionais apressadas e impensadas que juntaram na mesma instituição competências distintas que agora se atropelam entre si, levando à paralisação tendencial dos mega-organismos daí resultantes, desde logo pela perda da focagem especializada de cada área de gestão (sendo que, na realidade, essas fusões não se traduziram, por si sós, em redução significativa dos seus custos de operação, para lá de economias residuais nas respectivas chefias). Foi o caso, em particular, das colagens absurdas de Museus e Património e de Bibliotecas e Arquivos, para já não falar da agregação igualmente esquizofrénica dos Institutos Camões e da Cooperação. É urgente separar estas áreas de tutela improvisadamente sobrepostas – e nesse contexto, já agora, valeria a pena reflectir muito seriamente sobre a adequação da permanência do Camões e da definição de política cultural externa que lhe está adstrita na tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e não na do Ministério da Cultura, a exemplo, afinal, da política económica externa, cuja tutela reside no Ministério da Economia, através do ICEP, e não no MNE.

Nenhuma destas questões está, evidentemente, no cerne da definição da substância de uma nova política cultural, mas todas elas são instrumentos decisivos, a montante dela, para viabilizar essa definição e a sua passagem à prática. E todas elas se revestem, no quadro da herança tremenda de desertificação do sector institucional da Cultura deixada por Passos Coelho, de um carácter de absoluta emergência. Se o governo do Partido Socialista tem a ambição de valorização política efectiva da Cultura como pilar da Democracia e do desenvolvimento económico, como o traduzem o pensamento político conhecido do seu Primeiro-Ministro e o seu compromisso programático expresso, não pode adiar estas reformas para uma fase remota de eventual reforma estrutural de fundo da Administração Pública, sob o pretexto formal de uma desejável igualdade e simultaneidade de tratamento de todos os sectores do aparelho de Estado. Face aos demais sectores governamentais, todos eles com uma estabilidade institucional e com rotinas operacionais estabelecidas muito mais sólidas, que lhes permitem esperar sem convulsões uma solução global mais sistemática, a Cultura merece e exige uma discriminação positiva que lhe garanta a capacidade de sobrevivência a curto prazo, através de medidas de urgência de reestruturação orgânica já nos próximos meses. A um doente em estado crítico, potencialmente terminal, aplica-se-lhe uma terapêutica de emergência que ataque a causa imediata dessa condição e lhe permita sobreviver, não se lhe recomenda que se contente com um regime alimentar mais equilibrado na esperança de melhorar, a longo prazo, o seu estado geral de saúde.

Musicólogo, ex-secretário de Estado da Cultura

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