“Sou apenas o tipo que escreveu o livro”
Colm Tóibin gosta da versão para cinema do seu romance Brooklyn. Sentiu-se transportado para o princípio de tudo, de quando voltou a Enniscorthy, a cidade natal, e começou a interpretar o sentimento de solidão que sempre o acompanhou. Foi assim que criou Eilis, rapariga entre dois continentes
Colm Tóibin conta que ao ver Brooklyn, o filme que John Crowley acaba de fazer a partir do seu romance com o mesmo nome, teve a mesma emoção que sentiu antes de começar a escrever o livro, mas “ainda mais crua e mais imediata”, e acrescenta: “O filme transportou-me para o universo do romance.” Foi numa conversa breve, por email, dias antes do filme se estrear em Portugal e dois meses depois de ter revivido numa sala esgotada da sua cidade natal, Enniscorthy, a ambiguidade de emoções que o liga àquele lugar do sul da Irlanda onde decorre grande parte da acção do livro e do filme.
Depois de O Mestre (Dom Quixote) original de 2004, onde ficcionou a vida de Henry James, o irlandês Colm Tóibin publicava Brooklyn (Bertrand), em 2009, e aproximava-se da sua biografia pessoal num romance muito menos denso em que muitos críticos viram influências de Retrato de Uma Senhora. Reconquistava leitores voltava ao mundo da sua infância que ainda muito recentemente reconheceu numa entrevista ter determinado o que é enquanto escritor.
Brooklyn, o romance, situa-se no início da década de 50 e centra-se na personagem de Eilis Lacey, uma rapariga irlandesa de Einniscorthy, que emigra para os Estados Unidos, e vai viver e trabalhar para Brooklyn. Dois anos depois regressa a casa num momento dramático da sua vida. Ai, em Brooklyn, deixa à sua espera Tony, o namorado, e na Irlanda reencontra Jim, por quem se apaixona. Ficar em Einniscorthy ou voltar a Brooklyn é para Eilis uma escolha feita mais à luz de uma ideia de perda do que de qualquer certeza de conquista de felicidade ou libertação. Esse desconforto permanente em relação ao sítio onde se está – a Irlanda ou a América -, presente no modo como Tóibin explora o tema do exílio, e a sensação de isolamento ou solidão que se pressente quase sempre em Eilis, são as marcas dominantes do livro que venceu o Costa Award em 2009 e que foi agora transformado em filme pelo irlandês John Crowley.
Relação íntima com os sítios
No filme, Eilis é interpretada pela norte-americana de origem irlandesa Saoirse Ronan, que muitos críticos apontam como candidata a pelo menos uma nomeação para o Óscar de melhor actriz. Com Eilis, os lugares são os protagonistas da história. Em Brooklyn, filme ou livro, temos sempre uma rapariga numa relação íntima com os sítios por onde passa, e cada uma das pessoas que se cruzam com ela fazem parte de uma geografia precisa e contextualizada. Talvez por isso Colm Tóibin tivesse estranhado a ideia de John Crowley em filmar na actual Einniscorthy, a cidade que ele reconstitui no livro. Temia que fracassasse na tentativa de assim captar o ambiente da infância de Tóibin que ali nasceu precisamente em 1955, antes da globalização, numa altura em que a mudança era lenta e trazida pelos emigrantes que, a cada verão, voltavam de férias de Inglaterra ou iam mandando novidades dos Estados Unidos.
“Eilis nunca considerara ir para a América. Muita gente que ela conhecia partira para Inglaterra e regressava frequentemente no Natal ou no Verão. Fazia parte da vida da cidade. Ainda que soubesse de amigos que recebiam regularmente dólares como presente ou roupas vindas da América, eram sempre oferecidos por tias e tios, pessoas que tinham emigrado muito antes da guerra. Não se recordava de nenhuma dessas pessoas alguma vez aparecer na cidade para passar férias. Era uma longa viagem através do Atlântico, sabia Eilis, de pelo menos uma semana num navio, e devia ser cara,” lê-se no início do livro, para sublinhar uma distância entre as duas realidades de Eilis e que Tóibin conhecia das suas andanças, anos mais tarde, por esses dois mundos enquanto escritor, jornalista e professor.
Colm Tóibin escreveu este livro no seu regresso a Einniscorthy, ou a uma aldeia nos arredores, no cimo de uma colina que dá para a praia onde passou os seus verões em criança e onde decorre parte do livro e da acção do filme, um argumento de Nick Hornby (autor de Alta Fidelidade), que adaptou o romance para o cinema. Diz que sentiu, como Eilis, a estranheza e a falta, longe e perto, estar isolado não importa onde, mas que foi a reaproximação física que lhe permitiu a escrita e outro olhar sobre esse sítio que não seria possível apenas recorrendo ao exercício de memória.
O reconhecimento sentido por Colm Tóibin terá sido partilhado por quem com ele esgotou as duas primeiras sessões da ante-estreia do filme em Einniscorthy, no início do passado mês de Novembro. Gostou do que viu. Já o confessou em várias entrevistas, já escreveu sobre isso: “Do que gosto menos é da associação quase imediata que é feita entre esta forma [o filme] e o romance”, confessa agora, apontado o exemplo de um dos momentos que achou mais emotivos, quando na ceia de Natal dos sem-abrigo irlandeses de Brooklyn um deles se levanta para cantar e chama Eilis a quem segura a mão enquanto entoa tradicional canção de amor irlandesa, Casadh na tSúgáin. “Pronunciava cada palavra cautelosa e calmamente, construindo uma força, uma ferocidade, que se espalhava perlo modo como tratava a melodia (…) Toda a gente presente no salão o ouvia em silêncio.” É voz do cantor irlandês Iarla Ó Lionáird a única entoar a melodia antes da orquestração de Michael Brook e o silêncio de centenas de rostos num salão paroquial que se escuta em fundo ao longo do trailer de Brooklyn. “E gosto muito da interpretação de Saoirse Duncan”, continua Colm Tóibin enquanto conta que não conhecia bem John Crowley. “Tinha estado com ele uma ou duas vezes quando era um jovem realizador na Irlanda. E depois gostei de um filme que ele fez, Intermission [Dias Selvagens, em 2003]. Almoçámos uma vez em Londres antes de ele realizar o filme e depois estivemos um dia durante as filmagens em Montreal. Foi só isso. Brooklyn é o filme dele. Eu sou só o tipo que escreveu o livro.”
E é como quem diz que foi a única contribuição. Quando viu o cenário montado em Einniscorthy, com a reconstituição de rua e edifícios, como os correios, que são centrais também no livro, achou que o ‘espírito do tempo’ estava a ser capturado. Para isso terá contribuído uma equipa desta produção irlandesa, inglesa e canadiana que conhecia a Irlanda. Não era apenas parte do elenco e o realizador. É até onde vai a apreciação do escritor que no caso de Brooklyn, o filme, prefere não sair do seu papel de espectador. O que gostou de outras adaptações literárias ao cinema, destacando algumas de obras irlandesas. Como a que Neil Jordan fez de The Butcher Boy (Nó na Garganta, 1998, adaptação do livro com o mesmo título de Patrick McCabe), a de Thaddeus O'Sullivan's de December Bride, do romance homónimo de Sam Hanna Bell, estreado em 1991, ou a The Dead (Os Vivos e os Mortos), por John Huston, em 1987, a partir do livro de James Joyce, Dublinenses. “Curiosamente não me consigo lembrar de uma adaptação realmente má [a partir de um livro bom]. Talvez porque não me tenha deslocado a ver nenhuma, ou porque as apaguei da minha cabeça.”
Em relação a Brooklyn, o filme, Colm Tóibin, não é, contudo, o espectador vulgar. É como se ele reconhecesse uma origem e esse facto mexesse com a sua génese criadora. A tal emoção original que o faz olhar para a personagem Eilis, no ecrã quando “logo no início do filme está num salão de baile irlandês”, diz isto para situar, e depois: “São trinta segundos e o seu rosto regista muitas emoções distintas. Para um romancista isso equivaleria a 30 páginas. No ecrã leva um breve instante a uma actriz.” E o que é que isso lhe suscita? “Uma vontade enorme de trabalhar mais e melhor.”