Assuntos pessoais levaram-me à cave à procura de uns papéis. Entre um caixote e outro descubro álbuns de fotografias , com amigos e de viagens, que folheio com a delicadeza devida à memória de tempos felizes. É agora difícil acreditar que existe uma vida, além daquela em papel fotográfico, vida deslumbrantemente limpa de coisas inúteis.
Interiorizei que o tempo é só meu e não abdico disso. Estendo a mão para uma revista antiga, de páginas amarelecidas, e leio um longo texto sobre a amizade. Páginas do tempo em que havia bailes e longos telefonemas, enrolando na ponta dos dedos os caracóis do fio telefónico. Somo-lhe os anos que se passaram e polvilho o artigo com a velocidade cruel, zackzackzackzack, a que vivemos.
Dou por mim a pensar que a amizade não mudou, que cada encontro com alguém é, no fundo, um reencontro. Tornamo-nos amigos daquela pessoa porque a procuravamos. É verdade que muitos procuram sem encontrar. Porém, nunca ninguém achou sem procurar, mesmo que não soubesse o que procurava ou quem procurava.
E qual é a fórmula da amizade? Devia estar impressa em t-shirts como a da relatividade: ouvir o outro, dar-lhe atenção e importância. Com um tempo certo para falar, outro para ficar calado. O resto, os polegares azuis do Facebook, os "emojis" sorridentes são de plástico. "Copy paste" para uma legião, não têm a magia das palavras, nem o seu poder. Ainda menos o poder da presença, do estar ali a ouvir, mesmo que seja em silêncio.
A amizade precisa de pele, de ombro e disponibilidade. E a escolha de dar é nossa. Sempre. Não há desculpas, apenas egoísmo ou comodismo. Sempre que viajo em trabalho, e viajo muito, tenho um ritual: organizo encontros com as pessoas que me são importantes, seja um jantar ou um café rápido no aeroporto. Pelo Natal, escrevo postais, personalizados, porque cada amigo é irrepetível. Mantenho amizades de infância, outras de décadas, conquistei novos amigos espalhados pelo mundo e pelo caminho perdi poucos. Dá trabalho? Dá. Não o troco por nada. Em tempos li que cada viagem que fazemos deixa-nos mais longe da origem. Porque sempre que regressamos somos outra pessoa com outros lugares dentro de nós.
Na verdade, acredito que cada viagem, que cada amigo novo que se conquista nos aproxima mais da origem, e essa origem é a gentileza, a generosidade, a partilha e a entrega.
Fecho o álbum e dou por mim a pensar porque falham as amizades, porque se dissolvem como o último dia de Verão. Os motivos são quase sempre vagos, a maioria das vezes por desinteresse, falham sobretudo por esse pecado maior que é o orgulho.Fazer as pazes com um amigo é mais dificil do que com um mero conheido.
Sem coragem para perdoar somamos mágoas e o silêncios, a luz deixa de incidir e os intervalos do silêncio doem mais que palavras cortantes. Escassos propósitos os de reconciliação. A rendição é sempre inesperada. Acredito que trazemos dentro do peito um leão que nos faz caçar, brigar pelos nossos, correr em grupo pela savana. Os que se acomodam ,os que anestesiam o leão arriscam-se a acordar um dia numa jaula vazia.