Lá longe nos anos 90, vimos David Bowie em dose dupla

Primeiro no antigo estádio de Alvalade, em 1990, depois no segundo Super Bock Super Rock, em Alcântara, em 1996. A memória dos dois concertos portugueses.

Foto
Bowie no Passeio Marítimo de Alcântara, em 1996 DR

1990, Estádio de Alvalade. 1996, Passeio Marítimo de Alcântara. Primeiro em nome próprio, no início da já finada era portuguesa dos concertos de estádio. Depois, no arranque de uma outra era que ainda perdura, a dos festivais. A julgar pelo que escrevemos na altura, nenhum dos concertos de Bowie, naquela que terá sido a sua década menos estimulante em termos criativos, esteve à altura do mito.

14 de Setembro de 1990. Três meses antes os Rolling Stones tinham levado a Alvalade a Urban Jungle Tour, através da qual promoviam o álbum Steel Wheels. Já David Bowie estreava-se em Portugal com uma proposta promissora para os fãs. Vinha despedir-se dos clássicos da sua discografia. Seria portanto, para os portugueses, a primeira e última possibilidade de ouvir Space oddity, Changes, The Jean Genie ou Rebel rebel.

No dia do concerto, temia-se que as previsões de chuva afastassem o público necessário para preencher os 60 mil lugares disponíveis, e destacava-se “a estrutura metálica gigante, com 70 metros de comprimento por 25 de profundidade” onde David Bowie actuaria acompanhado por uma banda de quatro músicos – Adrien Belew (guitarra), Erdal Kizilcay (baixo), Rick Fox (teclas) e Michael Hodges (bateria). Ao contrário do que sucedera com os Rolling Stones, a organização, a cargo da promotora Tournée, garantia que a equipa de Bowie não fizera qualquer pedido extravagante. “O ambiente que se preparou nos camarins é apenas ‘confortável e sem grandes luxos’”, lia-se na antevisão do PÚBLICO.

“A estrela do espectáculo não é só, ou privilegiadamente, o sobrevivente quarentão, mas as várias projecções fantásticas dos seus duplos artísticos, num ecrã de fibra transparente gigante de 9x16 metros subindo e descendo sobre o palco, que vai velando/desvelando a sua presença física, mantendo com ela um diálogo permanente”. O Bowie de meia-idade em conversa com os Bowies que o antecederam, numa criação do coreógrafo Eduard Locke. “Uma vez mais Bowie trata de capitalizar as aquisições da vanguarda artística, adaptando-as às coordenadas dos shows rock populares”, assinalava o PÚBLICO.

Na ressaca do concerto, a que assistiram 20 mil espectadores, sobrava porém “o travo amargo de uma certa desilusão”. Ouviram-se os clássicos de que Bowie se iria supostamente despedir, mas não da forma desejada – “uniformidade cinzenta” e “massacre perpetrado em nome do rock’n’roll” foram algumas das expressões usadas para descrever as versões interpretadas.

Seis anos depois, o regresso. Bowie editara Black Tie White Noise, produzido com Nile Rodgers e reatamento da parceria de que resultara Let’s Dance, a banda sonora de The Buddha of Suburbia e Outside, trabalhado com o velho companheiro de armas Brian Eno e um álbum marcado pelo interesse no rock industrial e na música electrónica então emergente. David Bowie era o cabeça de cartaz do último dia do segundo Super Bock Super Rock. Antecederam-no nos dias anteriores os Moonspell, D.A.D, Xutos & Pontapés e Delfins, no arranque, e na véspera da sua actuação, os Da Weasel, Neil Hannon, dos Divine Comedy, Massive Attack e os então muito aguardados Prodigy.

O “querido” David Bowie
Domingo, 23 de Junho, Bowie chegaria por fim. O dia foi marcado pela decisão da organização em abrir as portas ao público, de forma a suprir a fraca venda de bilhetes registada e também pela depressão colectiva que se apoderou do público que trocara os concertos de Shane MacGowan & The Popes e do veterano dos blues John Mayall pelo ecrã gigante onde foi projectado o Portugal – República Checa do campeonato da Europa de futebol, que acabou com um chapéu de Karel Poborsky na baliza de Vitor Baía e a consequente eliminação da selecção portuguesa. “O futebol é o rei do rock’n’roll e para David Bowie estava reservada a marcação de todos os golos”, lia-se na reportagem do PÚBLICO.

Ao longo do dia ouviram-se os portugueses Flood e Primitive Reason, tomou-se o pulso à pop independente britânica com as Echobelly e o público cantou com Neneh Cherry 7 seconds, canção gravada dois ano antes com Youssou N’Dour” e que se transformara à época num êxito transversal. Depois, o reencontro.

“Só David Bowie conseguiu reunir o público e o entusiasmo que, no primeiro dia, assistiu aos Xutos & Pontapés. Se os Prodigy foram fulminantes, o efeito deveu-se mais à surpresa e à galopante carga de energia veiculada pelo bizarro carisma dos seus protagonistas”, assinalava o PÚBLICO, destacando que “Xutos e Bowie foram ambos espectáculos em que as pessoas prestaram vassalagem”. A ideia de abandonar os seus clássicos de outros tempos já fora posta de parte e, no Passeio Marítimo de Alcântara, ouviram-se Diamond dogs, Andy Warhol e The man who sold the world. Ouviu-se também Under pressure, o single que editara com os Queen em 1981, e, por todo o concerto, os “sons de dança” e as “misturas de jungle” registadas em Outside, o álbum que Bowie editara em 1995.

Palco decorado com “manequins amarrados e embrulhados em lençóis”, o concerto seria encerrado com uma versão de White light, white heat, dos Velvet Underground. Apesar de não ter reunido consenso, a actuação acabou por ser alvo de celebração. Afinal, David Bowie é David Bowie. “Despediu-se do público com um carinho e ainda lhe tirou uma fotografia: foi um querido”.

Em 2004, um regresso, desta vez ao Porto, chegou a ser anunciado. Coincidiu, todavia, com o diagnóstico dos problemas cardíacos que levaram o músico a anunciar a retirada dos palcos. Concerto cancelado, tornou-se oficial: nas memórias portuguesas de Bowie, teríamos que nos contentar com a dose dupla nos anos 1990.

 

Sugerir correcção
Comentar