Um teatro feito de tudo e de nadas
Alex Kelly aproveita O Grande Livro dos Pequenos Detalhes para escrever a história de detectives por que sempre esperou. Paula Diogo, intérprete e co-criadora da peça, Victor Hugo Pontes, Joana Craveiro e Jorge Andrade lembram o curso de encenação de Kelly na Gulbenkian em 2004 e 2007.
No Natal de 2014, Alexander Kelly foi presenteado com a colecção integral de Moonlighting (Modelo e Detective). A série protagonizada por Bruce Willis e Cybill Shepherd (lançou-o, salvou-a), um misto de policial, romance, drama e comédia, tudo misturado de uma forma quase insustentável que lhe dava um charme particular – cada episódio parecia tactear à procura de um sentido narrativo que, felizmente, escapava sempre – e a tornou um fenómeno na segunda metade dos anos 80, fora uma obsessão para Kelly durante a sua adolescência. E a integral poderia bem ter ficado com o celofane intocado, não fosse o confronto actual com o objecto conspurcar essa memória cândida; poderia muito bem ter ficado apenas a decorar alguma prateleira, plenamente justificada por lembrar e documentar esse passado. Mas o dramaturgo e fundador da companhia Third Angel quis, de facto, regressar a Moonlighting e, reconhecendo tratar-se de material datado, encontrou ali “uma escrita televisiva muito inteligente – em que o que é mesmo conseguido é que, em 10 ou 12 minutos por episódio, vai-se apanhando a história de fundo entre Willis e Shepherd, quase sempre com um enredo policial associado com que lidam acidentalmente”, conta ao Ípsilon.
Típico de uma mente formatada e viciada na arquitectura das histórias, Kelly não resistiu a sujar as mãos e, enquanto assistia a um dos episódios, ocorreu-lhe um enredo que encaixava na estrutura da série. Foi essa proposta de enredo que o inglês enviou a Paula Diogo quando a actriz – parte de um quarteto luso-brasileiro em que se incluem ainda Cláudia Gaiolas, Michel Blois e Thiare Maia Amaral – lhe pediu quatro possibilidades de texto para um projecto em que tralhavam em conjunto. Kelly respondeu com a sua história detectivesca, oferecendo quatro finais possíveis. Foi a cola perfeita para juntar ao desafio original lançado pelos actores ao homem dos Third Angel, quando lhe encomendaram um texto que tratasse dos factos insignificantes da vida. Daí que O Grande Livro dos Pequenos Detalhes, em estreia nacional no Teatro Maria Matos, em Lisboa, de 8 a 13 de Janeiro, e em cena no Teatro Rivoli, Porto, 15 e 16 de Janeiro, baloice entre o labor de uma organização responsável por aspergir pelo mundo estes detalhes que compõem o quotidiano e distraem os mortais dos seus problemas, e a demanda policial que se segue ao desaparecimento de uma locutora de rádio que informa os ouvintes sobre o estado do trânsito e, às tantas, resolve adulterar esses dados instalando o caos na cidade.
O Grande Livro dos Pequenos Detalhes tem vários momentos de arranque. Os quatro actores conheceram-se em 2009 no âmbito do Projecto Estúdios (promovido pelo Mundo Perfeito, de Tiago Rodrigues), em que cada um de sete artistas apresentava num solo o seu cartão-de-visita ao público do Maria Matos. A partir dos solos, criaram depois três espectáculos distintos em que, como nos relata Paula Diogo, houve um rápido e fácil “entendimento criativo e pessoal” e em que produziram “muito material uns para os outros diariamente e de forma muito descomprometida”. “Foi uma experiência muito feliz de criação e que quisemos repetir.” Num outro momento inicial, Alex Kelly falou a Paula Diogo do livro O Estranho Caso do Cão Morto, de Mark Haddon, que a actriz lançou para cima da mesa quando o encontro a quatro começou a ser discutido – interessada que estava em sorver alguma coisa da leitura muito particular do mundo inscrita no olhar de uma criança autista.
O livro serviria, no entanto, apenas de pista para a criação de um texto original – que, na génese, deveria ter sido escrito a quatro mãos, duas para Kelly, outras duas para Tiago Rodrigues, cujas funções enquanto director do Teatro Nacional D. Maria II o afastaram do projecto. Alex ficou com a escrita por inteiro, Michel conseguiu financiamento no Brasil que garantia a estreia da peça e partiram para um trabalho de criação colaborativa que respeita, em boa medida, o método de devising que Alex Kelly tem explorado nos Third Angel e que consiste em identificar uma temática, deixar que as ideias puxem ideias e propor textos que os actores experimentam e são depois repensados e reescritos (em Partus, que os ingleses estreiam na próxima semana em Sheffield, sobre partos traumáticos, um dos segmentos foi composto a partir do exercício proposto aos actores para que descrevessem pelas suas palavras “a dor”). Claro que havendo “uma história de detectives”, ri-se Kelly, “alguém teria de decidir o enredo. E eu sempre quis escrever uma história de detectives.”
O curso da Gulbenkian
Paula Diogo descobriu os Third Angel quando, ao terminar o Conservatório, começou a investigar o trabalho de algumas companhias estrangeiras, averiguando da eventualidade de poder desencadear algumas oportunidades no exterior. Escreveu a Alex Kelly e rapidamente obteve uma resposta, acabando por conhecê-lo no Porto, em 2004, por alturas do primeiro Curso de Criatividade e Criação Artística de Teatro que os ingleses dirigiram na Fundação Calouste Gulbenkian. A actriz participaria, passados três anos, na segunda edição de uma formação – assegurada por Kelly e Rachael Walton, alicerçada em técnicas de devising e direcção teatral – que deixou marcas profundas no meio artístico nacional. Familiarizada com a linguagem da companhia, a actriz sabia minimamente ao que ia: “exercícios para desenvolver o trabalho criativo e ganhar ferramentas para gerar material”.
Ao contrário, por exemplo, do coreógrafo Victor Hugo Pontes, na altura “a tentar absorver o máximo de informação possível e recolher o máximo de formação”, diz ao Ípsilon. Completado o Curso de Pesquisa e Criação Coreográfica do Fórum Dança, teve o imediato impulso de se inscrever no curso da Gulbenkian assim que viu o anúncio. “Confesso que fui ver algumas imagens dos Third Angel e ler sobre os espectáculos deles – e aquilo atraiu-me imenso. Os meus trabalhos tinham que ver com fotografia e memória e percebi que eles também integravam isso. Tanto que, na altura, para fazer o curso desisti de uma outra coisa.” Num grau semelhante de desconhecimento encontrava-se Jorge Andrade, da Mala Voadora, que sabia apenas “o suficiente para saber que não tinha muito a ver com o teatro que por cá se fazia nessa altura”. “E foi por isso – na altura, apenas por isso – que resolvi inscrever-me”, explica-nos. Rejeitando em absoluto uma ideia de filiação no trabalho dos Third Angel, a Mala Voadora descreve num texto escrito a convite do British Council que o curso não lhes indicou um caminho, mas abriu-lhes uma porta. A essa porta chamam “um contexto alargado de possibilidades procedimentais e cénicas”
Se faz sentido rejeitar essa filiação, tal deve-se à “excelente relação” construída no curso e que levou a que Third Angel e Mala Voadora fossem acompanhando os seus percursos até confluírem, finalmente, em duas criações partilhadas – What I Heard About the World (2010) e The Paradise Project (2014). Não se considerando também “um discípulo fiel dos Third Angel”, até porque a prática artística do coreógrafo desenvolveu-se no sentido de dispensar cada vez mais o texto, Victor Hugo reconhece esse lastro muito evidente nas peças imediatamente seguintes à formação, nomeadamente 100 Palavras – “quase uma colagem de exercícios que fizemos e das ferramentas que nos deram”. Mas o que ficou foi sobretudo a tomada de consciência de que “a partir da mínima coisa se pode fazer um espectáculo muito surpreendente”. “Foi uma grande aprendizagem esta coisa de podermos estar a ler o jornal”, exemplifica, “de o título de uma notícia servir de mote para um espectáculo e em seguida fazermos uma pesquisa e percebermos como podemos construir uma peça a partir de algo que parece quase insignificante. E depois havia também a rapidez com que tínhamos de tomar decisões. Todos os dias tínhamos propostas e havia que decidir – e dirigir é, sem dúvida, decidir.”
A voz colectiva
“Recordo-o como um período extremamente feliz”, lembra Alex Kelly acerca do primeiro curso, o qual pôde esticar-se por três blocos de três semanas durante o Verão. Essas excepcionais condições de duração – até então os Third Angel nunca tinham ultrapassado uma semana – permitiram que a formação se aproximasse dos próprios processos criativos da companhia, colocando a exploração livre da ideia do que um espectáculo poderia ser à frente de qualquer desenho de guião, o que favorecia, no entender de Kelly, um sentido muito lúdico daquele tempo dilatado passado em conjunto. “E todos aproveitaram para aprender uns com os outros – não só com os formadores. Também aprendi imenso com eles, que tinham backgrounds muito diferentes – encenadores, actores, artistas visuais, cineastas, etc.”
O investimento na colaboração, que Joana Craveiro já vinha desenvolvendo no Teatro do Vestido, foi também determinante na passagem da autora de Museu Vivo das Memórias Pequenas e Esquecidas pelo segundo curso dos Third Angel. Para Joana, que estudara e leccionara na Escócia, o método do devising não era desconhecido, mas as técnicas aplicadas por Alex e Rachael dotaram-na de ferramentas novas – “apliquei mais tarde muitas coisas que aprendi ali”, diz –, como “a componente dialógica”, que envolvia haver sempre um responsável pelo olhar exterior em cada exercício de grupo. Esse feedback de alguém que ficava num posto de observador, confessa, ainda o partilha com outros criadores (André Amálio ou Maria Gil) que encontrou no curso e com quem estabeleceu esta normalidade de chamar ou ser chamada para assistir a ensaios em busca desse contributo de quem está de fora.
“Através dos exercícios do Alex”, acrescenta, “pude descobrir uma voz diferente dentro da minha prática da autobiografia. A partir daí desenvolvi uma linha autobiográfica que conduz ao meu trabalho actual. E o Alex dava-nos sempre feedback sobre o nosso trabalho, isso era muito importante.” A esse respeito, Paula Diogo, que classifica Kelly como “um educador maravilhoso”, destaca o facto de as suas avaliações se fazerem sempre de um ponto de vista positivo. Em sentido inverso, em O Grande Livro… é Alex Kelly quem acolhe os feedbacks sobre a sua escrita e a vai moldando aos desejos e expectativas dos actores, assumindo (naquela que é uma das suas obras de escrita mais tradicionais – não pisa o palco nem dirige a peça, apenas fornece o texto) uma voz colectiva que, em última análise, não controla.