Um génio clarividente
Com a morte de Pierre Boulez a 5 de Janeiro de 2016 encerra-se simbolicamente a música do século XX.
Pierre Boulez foi a mais influente personalidade da música contemporânea na segunda metade do século XX, nas suas diversas facetas de compositor, maestro, dirigente institucional e teórico.
Inicialmente estudou piano, mas também matemática e ciências, tendo nomeadamente frequentado o ensino de jesuítas. Decidido a dedicar-se à música, falha contudo o exame de entrada no curso de piano no Conservatório Superior de Paris, cidade para onde se mudou em 1943. Pouco tempo depois consegue contudo entrar na classe de Harmonia de Olivier Messiaen no mesmo Conservatório, a qual, mais que estritamente de harmonia no sentido do ensino tradicional, era de facto o que viria a ser designado de Análise Musical, e é aí que se abre a sua verdadeira descoberta das novas perspectivas da composição. Frequenta também René Leibowitz, grande divulgador do dodecafonismo de Schönberg e a sua escola.
No pós-guerra iniciam-se os cursos de música de Darmstadt, originando uma “vanguarda” radical, tendo como expoentes Boulez, Stockhausen e os italianos Maderna, Nono e Berio. Foi o momento de fazer tabula rasa do passado, retomando já não tanto Schönberg mas o seu discípulo Webern e as perspectivas descobertas numa pequena peça de Messiaen, Mode de Valeurs et d’Intensités.
Se o dodecafonismo de Schönberg se formulava com base em séries incluindo todos os meios-tons da escola cromática, Boulez e a “vanguarda” praticaram então o serialismo integral, aplicado ao conjunto dos parâmetros musicais, altura, timbre, duração e dinâmica. De todos esses compositores, Boulez foi o mais panfletário e polémico, e mesmo quando mais tarde as suas posições tinham evoluído consideravelmente nunca renegou ou fez auto-crítica desse dogmatismo serial, considerando-o uma “etapa necessária”.
Entretanto por necessidades materiais tinha-se tornado director musical da companhia Renaud-Barraut. Foi no teatro dessa companhia, o Marigny, que em 1954 começou os concertos do Domaine Musical, primeiro agrupamento dedicado especificamente à música contemporânea. O título de um dos seus livros, Por vontade e por acaso, aplica-se particularmente a esta situação: por necessidade, por vontade e por acaso, porque os agrupamentos existentes não tocavam música contemporânea, Pierre Boulez tornou-se maestro.
Mestre da clareza e da interpretação analítica, ele viria a tornar-se um maestro eminente e nomeadamente director titular das Orquestras da BBC em Londres e da Filarmónica de Nova Iorque, posto este em que sucedeu a Leonard Bernstein. Desenvolveu também uma importante colaboração regular com outra prestigiada formação americana, a Orquestra de Cleveland, e em 1965 estreou-se no Festival de Bayreuth dirigindo o Parsifal. Seria aí que em 1976, ano do centenário do Anel do Nibelungo e do Festival, e até 1980, dirigiu, com encenação de Patrice Chéreau, a tetralogia, numa produção que entraria na lenda.
Depois da assinatura de um contrato de exclusividade discográfica com a Deutsche Grammophon, em 1989, e das alterações no Festival de Salzburgo e na Filarmónica de Berlim sucessivas à morte de Herbert von Karajan, Boulez, cada vez mais maestro respeitadíssimo – que dirigia sempre sem batuta e com a partitura à frente – não só continuou a sua colaboração com duas das mais importantes orquestras americanas, as de Cleveland e Chicago, como passou a dirigir também regularmente as Filarmónicas de Berlim e Viena.
A sua experiência de maestro viria aliás a ser determinante na sua evolução composicional. Não só com a criação do IRCAM se tinha instituído um sólido instrumento para desenvolver a electrónica em tempo real (em meados dos anos 1950 Boulez abordara a criação electroacústica mas logo se desinteressara de uma composição em banda magnética imutável, sem interpretação real), como se tornou atento às questões da escuta.
Foram essas questões que o levaram a compor o extraordinário Répons (1981/86) em que a trajectória do som é claramente perceptível pelos ouvintes – a obra foi ouvida em Lisboa, em Outubro de 1990, num concerto da Gulbenkian realizado no Convento do Beato e a doença que já o atingia impediu que viesse à Casa da Música em 2012, dirigi-la com o Remix, no que teria sido a 1ª vez que o faria sem o InterContemporain.
Depois de ter abandonado a França em polémica com a política musical do ministro da Cultura André Malraux, em meados dos anos 1960, regressaria na década seguinte, com a protecção do Presidente Georges Pompidou e de sua mulher, Claude. Seria no novo Centro Pompidou em Beaubourg que se iniciariam as actividades do IRCAM, Instituto de Pesquisa e de Coordenação Acústica/Música, e de um novo agrupamento, o Ensemble InterContemporain, ambos dirigidos por ele, tal como viria a estar na origem da Cité de la Musique e da Philarmonie de Paris aberta no começo do ano passado contra a vontade do seu arquitecto, Jean Nouvel, numa altura em que Boulez estava já gravemente doente, muitos tendo presumido que tal abertura precipitada tinha ocorrido para que ele pudesse ainda estar presente. Foi também professor no College de France.
Um tal poder efectivo valeu-lhe muitas contundentes críticas às quais sempre respondeu dizendo que nas instituições que dirigia não eram desenvolvidas ou interpretadas apenas obras correspondentes ao seu gosto pessoal. Por exemplo, ele próprio tinha surpreendido tudo e todos abordando e gravando obras de um iconoclasta músico pop, Frank Zappa.
Le Marteau sans Maître, Le Visage Nuptial, Pli selon Pli, Rituel in Memoriam Maderna, Répons, Explosante Fixe ou Éclats/Multiples são algumas das suas obras mais marcantes.
Foi um excepcional intérprete de Wagner, Mahler, Debussy, Stravinsky, Ravel, Bartók, a Escola de Viena (Schönberg, Berg e Webern), Messiaen e dos contemporâneos. Mas nos últimos anos de actividade, cada vez mais liberto da ortodoxia modernista, abordou também Bruckner, Janacék e Szymanowski.
Na variedade e importância das suas diversas facetas, Pierre Boulez foi uma personalidade incomparável da história da música europeia. Era um homem e uma figura de uma inteligência luminosa como poucas, um génio clarividente.
Com a morte de Pierre Boulez a 5 de Janeiro de 2016 encerra-se simbolicamente a música do século XX.