Os livros que as listas esqueceram
Não entraram por um triz nos melhores do ano porque desafiaram a lógica com que os balanços são feitos ou porque ficaram aquém das expectativas, mesmo quando foram anunciados como acontecimento. Esta é uma lista alternativa para fechar o ano literário – outra versão de uma história chamada 2015.
Foi há um ano: 2014 chegava ao fim com o anúncio de grandes novidades para o 2015 que aí vinha. Para começar, nada mais do que o novo – e sexto – romance do francês Michel Houellebecq, 59 anos, por si só já um “caso” literário: Soumission. Intriga aparentemente simples, mas elaborada de forma inquietante: em 2022, após um segundo mandato de François Hollande, o voto em França espartilha-se entre dois partidos, ambos da extrema-direita (um liderado por Marine Le Pen, o outro por um líder islâmico chamado Mohammed Ben Abbes). Silenciosamente, as elites francesas aderem ao discurso islâmico e instala-se no país um estado autoritário baseado nas regras da sharia.
No dia anunciado para o lançamento da edição francesa do romance, 7 de Janeiro, a sede do jornal satírico Charlie Hebdo era alvo de um ataque terrorista reivindicado pelo autodenominado Estado Islâmico. Imediatamente, Soumission passou a integrar o discurso acerca dos factos. Michel Houellebecq, acusado de xenofobia mesmo antes de o livro poder ser lido, adiou o lançamento. Uma semana depois, Soumission, que teve uma tiragem inicial de 150 mil exemplares, batia recordes de vendas, Vários meses mais tarde, a 11 de Outubro, voltava a imiscuir-se nos discursos sobre a vida real. O terror do ISIS atacava de novo em Paris e uma vez mais o romance de Houellebecq era usado para interpretações mais ou menos abusivas acerca do que se passava.
Publicado em Portugal pela Alfaguara, em Abril, Submissão não recolheu por cá, tal como não recolheu em França, a unanimidade da crítica. 2015 terminou com o romance a falhar a lista dos melhores do ano.
Mas Michel Houellebecq não deixou de ser um dos acontecimentos literários de 2015, exactamente como o seria Harper Lee. Durante décadas canonizada como a autora de um único romance que marcou a história da literatura do século XX, Mataram a Cotovia – depois do qual se remeteu ao silêncio, declarando que tudo o que tinha para dizer estava naquele livro –, Lee escrevera, afinal, outro romance. Mataram a Cotovia, publicado em 1961 e vencedor do Pulitzer, era a sua segunda obra, criada a partir do secreto Vai e Põe uma Sentinela, cuja surpreendente edição se anunciava para Julho de 2015. Neste novo (velho) livro, Atticus Fitch, o advogado que se tornou um símbolo da igualdade de direitos entre brancos e negros na América, surge mais velho e mais próximo do movimento Ku Klux Klan. Publicado em Portugal pela Presença, o livro – que muitos criticaram por sair numa altura em que a sua autora, de 89 anos, já não tinha capacidade de decisão – revelou-se sobretudo útil para entender o percurso de Harper Lee, e para evidenciar a excepção que o outro seria. Foi um dos livros mais falados do ano, mas dela também não reza a História fixada pelas listas de 2015.
Porquê?
Houllebecq e Lee falharam o pódio. A lista do Ípsilon foi publicada há duas semanas. Houve tempo para digerir, concordar ou não, reparar em ausências e formular a pergunta da praxe: porquê? Porquê aqueles? Porque não estes? É a pergunta final mas também a inicial, a que tentaram responder os que elegeram os títulos. Estavam ali porque foram considerados a nata de um ano literário e editorial. Mas uma lista, além de obedecer a uma lógica – que no caso privilegiou a produção contemporânea –, impõe um limite, e foi só mesmo por um triz que entre os dez livros de ficção escolhidos como os melhores de 2015 não estivessem, por exemplo, Tudo o Que Conta, o primeiro romance de James Salter publicado em Portugal (Livros do Brasil), ou Na Margem, do escritor espanhol Rafael Chirbes (Assírio & Alvim). Os dois autores morreram precisamente este ano. Salter em Junho, dias depois de ter feito 90 anos; Chirbes em Agosto, aos 66. Um como o outro, depois de os seus livros terem finalmente conhecido edição em Portugal.
No livro de Salter, um homem em final de vida recorre ao que lhe resta para reconstituir o seu percurso pessoal: ou seja, à memória. É ela que constrói e destrói a identidade, porque só a partir dela é possível a cada um contar-se. Diz Salter: a memória é tudo o que temos. Em Na Margem, Chirbes fala da ruína de um tempo e dos danos morais causados por esse fim. É a crise actual contada por um romancista que também foi um dos grandes cronistas contemporâneos. Ambos estão entre os grandes romances contemporâneos publicados em Portugal em 2015.
E entre as edições que merecem ser celebradas estão também dois clássicos publicados no último trimestre deste ano: Oblomov, de Ivan Gontcharov (tradução de António Pescada), e O Salão Vermelho, de August Strindberg (tradução de João Reis), saíram respectivamente pela Tinta-da-China e pela E-Primatur. “Era um homem de trinta e dois ou trinta e três anos, de estatura mediana, bem-apessoado, de olhos cinzentos-escuros, mas com uma total ausência de qualquer ideia precisa, de qualquer concentração nos traços do rosto. O pensamento voava-lhe pelo rosto como um pássaro livre, esvoaçava nos olhos, pousava nos lábios entreabertos, ocultava-se nas rugas da testa, depois desaparecia por completo e então parava-lhe em todo o rosto a fraca luz uniforme da despreocupação. Essa despreocupação passava do rosto para a postura de todo o corpo, e até para as pregas do roupão.” Eis Oblomov, o ícone da superficialidade, do ser indolente e preguiçoso, passivo, criado em 1859 por Ivan Gontcharov (1812-1891), amado por Tolstói e odiado por Dostoiévski. A partir desta figura – de uma complexidade que sugere uma existência real –, o escritor concebe um quadro complexo da existência humana.
August Strindberg (1849-1912) escreveu O Salão Vermelho 20 anos depois; é ainda hoje considerada uma das obras fundadoras do modernismo literário. Se em Oblomov há uma personagem-tipo a partir da qual se traça um conjunto, em O Salão Vermelho há um colectivo num espaço determinado a tipificar um tempo.
E agora um salto cronológico. A dimensão e a complexidade do mais recente romance do filólogo e escritor catalão Jaume Cabré (n. 1947), Eu Confesso (Tinta-da-China), são um desafio e dois dos principais obstáculos à sua leitura. Passado o teste das primeiras páginas, estamos perante um dos romances mais estimulantes e absorventes publicados este ano em português. A sua forma é a de uma longa carta de amor onde o protagonista expõe as contradições que formam tanto o indivíduo como a História num tempo que ultrapassa o da sua vida. O bem, o mal, a culpa, o ódio, o homem perante a sua inevitável solidão, com todas as vozes que o habitam. Como se todo o tempo vivesse nele. Imperdível, este Cabré.
Em português
Por cá, 2015 trouxe José Cardoso Pires, completo, de volta. Foi uma das muito boas notícias em português. Com a reedição de toda a obra de Cardoso Pires (1925-1998) preencheu-se uma falta. Muitos dos títulos do autor de O Delfim ou Alexandra Alpha, antes editado pela D. Quixote, não estavam disponíveis no mercado. Os direitos passaram este ano para a Relógio D’Água, que desde Abril começou a relançar os livros do escritor com prefácios de António Lobo Antunes, Ana Margarida Carvalho, Mário de Carvalho ou Gonçalo M. Tavares.
Ainda em português, houve duas estreias notáveis de duas mulheres, numa escrita próxima da pele. Ana Cássia Rebelo, 46 anos, com o livro Ana de Amesterdam (Quetzal), uma antologia de textos do blogue com o mesmo nome, e Djaimilia Pereira de Almeida, 33 anos, com Esse Cabelo (D. Quixote), misto de ficção e ensaio a desafiar géneros onde, como no livro de Cássia, entra também a autobiografia. E se no primeiro caso há um jogo de exposição – suposta ou declarada – a desafiar o pudor de uma mulher dilacerada por um presente que a testa nos seus limites, no segundo há uma certa cerimónia no modo como alguém tenta situar-se no mundo e encontrar uma identidade. Destaque ainda para outro estreante, João Pinto Coelho, 47 anos, com Perguntem a Sarah Gross, romance que questiona o Holocausto a partir do sítio que deu nome a Auschwitz. Foi uma das surpresas de 2015.
Quase a terminar o ano, o escritor angolano José Luandino Vieira, 80 anos, apresentou Os Papéis da Prisão (Caminho), onde reúne diários, memórias, cartas e relatos dos anos em que foi preso político, entre 1962 e 1971. O livro é um vasto documento que encerra um projecto político e literário por um dos autores mais originais em língua portuguesa, vencedor em 2006 do Prémio Camões, que recusou receber alegando razões pessoais.
2015 foi ainda ano de efeméride: a revista Orpheu, que à sua época se apresentava como “literatura de manicómio”, fez cem anos e houve uma edição especial. Organizado por Steffen Dix e publicado pela Tinta-da-China, o volume 1915 – O Ano de Orpheu celebrou aquela que foi a mais influente e emblemática revista cultural e literária do século XX português, protagonizada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Os acontecimentos
A edição integral em português dos Diários de Franz Kafka – traduzidos por Isabel Castro Silva e publicados pela Relógio D'Água – é outro motivo para celebrar 2015. Aqui temos a escrita diarística do escritor checo entre 1909 e 1923, o ano que antecedeu a sua morte: o leitor torna-se testemunha do processo de criação dos seus romances e contos e aproxima-se um pouco da resposta à maior das perguntas kafkianas, “quem sou eu, afinal?”, que continua a ser um enigma.
Mas o ano que agora termina veio também confirmar uma tendência: edições quase simultâneas – ou mesmo simultâneas – de uma obra em várias línguas, forjando acontecimentos mediáticos à escala global. O norte-americano Jonathan Franzen, 56 anos, não tinha um romance novo há cinco anos, desde Liberdade (D. Quixote). Considerado a nova consciência moral da América, Franzen publica e as atenções concentram-se no que escreve. Desta vez, um romance de intriga mais intricada do que os anteriores, onde o escritor gere um mistério construído à volta de uma complexa teia de relações que questiona a dependência de meios como a Internet, tudo arquitectado com boa dose de ironia e crítica social: Purity teve lançamento mundial em Setembro e é um dos livros marcantes deste ano.
Anunciado como “acontecimento” estava outro livro de outro norte-americano. Desta vez um estreante. Garth Risk Hallberg, 36 anos, recebera o maior adiantamento de direitos de sempre – dois milhões de dólares – para escrever um romance com acção na Nova Iorque dos anos 70, em plena energia punk e num frenesim cultural e económico. Cidade em Chamas (Teorema) saiu em Portugal no final de Outubro, duas semanas depois da edição americana. Mil páginas que arrancam com uma morte ocorrida na passagem de ano de 1976 para 1977 e terminam no blackout de Julho desse ano. A crítica divide-se: há quem considere estar perante uma obra-prima, outros vêem nele um livro excessivamente ambicioso.
O livro da britânica Helen Macdonald, H is for Hawk, esteve em destaque no ano passado nos países de língua inglesa. Finalista de vários prémios, ganhou um dos mais prestigiados, o Costa Award. Editado este ano em Portugal com o título A de Açor (Lua de Papel), conta a memória pessoal da autora depois da morte do pai: um testemunho pungente que fala da vida e da morte sem complacências, e que mostra como se pode fazer um luto treinando um açor.
Em inglês ainda, 2015 teve um brilhante romance de Ian McEwan, 67 anos. A Balada de Adam Henry (Gradiva) é uma reflexão sobre a ética que comanda as nossas vidas a partir de um caso levado a tribunal. Os Mutilados (E-Primatur), de Hermann Ungar (1893-1929), é outro título a reter entre os melhores publicados em Portugal em 2015. Original de 1923, proibido pelo regime nazi, anuncia a queda do homem num mundo sem Deus. Do contemporâneo Alberto Manguel (n. 1948) chegou um livro que apela à necessidade de fazer perguntas: Uma História da Curiosidade (Tinta-da-China) esteve entre os títulos mais discutidos e celebrados deste ano.
E entre todos os títulos deste ano há um que celebra o imaginário, as imagens construídas à volta da leitura. Chama-se justamente O Que Vemos Quando Lemos e foi criado por um dos mais experientes e premiados designers de livros da actualidade, Peter Mendelsund.