Duas mulheres candidatas representam uma “viragem” na política portuguesa

Pela primeira vez, duas mulheres são candidatas a Presidente: Maria de Belém Roseira e Marisa Matias. Anteriormente, só Maria de Lourdes Pintasilgo se candidatou. O PÚBLICO ouviu a investigadora Carla Martins sobre o significado desta mudança.

Foto
Maria de Belém e Marisa Matias, as duas mulheres candidatas a Presidente da República Miguel Manso

A existência de duas mulheres candidatas a Presidente da República na eleição de 24 de Janeiro, Maria de Belém Roseira e Marisa Matias, é uma novidade na política portuguesa, classificada como um momento de viragem por Carla Martins, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género e professora no curso de jornalismo da Universidade Lusófona.

Autora da obra Mulheres, Liderança, Política e Media, publicada pela Alétheia, onde aprofunda a forma como a comunicação social tratou os casos de Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite, Carla Martins considera que, nesta campanha, “há um avanço, há um turning point, não tanto a nível do discurso jornalístico, mas da política”.

Carla Martins defende, em declarações ao PÚBLICO, que a actual viragem acontece ao nível das “estratégias de afirmação das candidatas como mulheres” e na sua “afirmação como feministas e como defensoras de uma agenda de igualdade”. Uma normalização manifesta no facto de as candidatas não esconderem essa sua condição. Daí que a investigadora conclua que hoje “a palavra feminista já não mete medo”.

Trabalhando na Entidade Reguladora para a Comunicação Social e tendo sido na última legislatura assessora da presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, Carla Martins sublinha que na política “há momentos em que emerge este ângulo de género”, o que acontece, precisa, “sempre que há mulheres que surgem a desempenhar funções políticas ou como candidatas”.

A investigadora recorda que a primeira vez que as questões de género emergiram na política portuguesa foi “em 1979, quando Maria de Lourdes Pintasilgo foi indigitada primeira-ministra” no V Governo Constitucional de iniciativa do Presidente da República António Ramalho Eanes, e “houve a abertura a dois sexos”, ou seja, “a política nacional passou a ter dois sexos”. Isto apesar de formalmente Maria de Lourdes Pintasilgo “ainda ser chamada primeiro-ministro” na comunicação social, uma vez que se considerava que a palavra só tinha masculino.

Foi o arranque, em Portugal, da “discussão sobre a igualdade do poder”, um debate que voltou a surgir com primeiro plano, quer quando Manuela Ferreira Leite foi ministra das Finanças, em 2002, mas sobretudo quando em 2009 a já presidente do PSD se candidata a primeira-ministra, contra o então primeiro-ministro e líder do PS, José Sócrates. Só que com Manuela Ferreira Leite o debate não foi tão fundo porque “ela não quis essa discussão, limitou-a”, ao contrário de Maria de Lourdes Pintasilgo que fez questão sempre de se assumir como feminista e de defender a igualdade entre mulheres e homens.

Legislativas consolidam
Ora, segundo Carla Martins, “nos últimos meses, houve factores que consolidaram as questões de género”. Por um lado, houve “a campanha do BE” para as legislativas, centrada nas figuras de Catarina Martins e de Mariana Mortágua. Por outro lado, “a eleição de maior número de mulheres para a Assembleia da República”, um recorde de 76 deputadas em 230 mandatos, mostra que há uma evolução real da presença das mulheres na política.

Mesmo em relação às eleições para Presidente da República, além de Maria de Belém Roseira e de Marisa Matias, “falou-se de quatro candidatas a Presidente”, lembra Carla Martins, referindo-se ao facto de Manuela Gonzaga, do Partido Pessoas-Animais-Natureza, ter anunciado a sua intenção em candidatar-se, assim como a militante do PS Graça Castanho, que acabou por desistir porque as assinaturas que já tinha recolhido ter sido destruídas no início de Dezembro pelo temporal na Madeira.

Além disso, Carla Martins sublinha que “as questões de género ganham relevância no discurso jornalístico”, se bem que este aspecto possa “ser passageiro ou possa viver-se também aqui um momento de viragem”. A autora da obra Mulheres, Liderança, Política e Media destaca que, “quando é activado este ângulo de género, começa a falar-se do poder no feminino e é importante que a própria linguagem o reflicta”. Daí que seja vulgar o uso de expressões como ‘poder no feminino’.

Mas há outro aspecto salientado por Carla Martins: o facto de que este debate “simbolicamente é inspirador para outras mulheres” ao gerar “o debate para pensar as desigualdades”.

Esta especialista em questões de género refere uma quarta questão que está implícita neste debate: a de que o próprio debate pode ser “uma marca de exclusão das mulheres”. Ou seja, ao tornar explícito que é uma excepção pode “tornar a presença feminina mais excepcional”.

E Carla Martins enfatiza: “O problema é quando o poder no feminino reproduz a diferença de género.” Isto porque “falar da forma como as mulheres exercem o poder, que o poder das mulheres é específico e diferente, é uma forma de reproduzir essa diferença e de a manter”, afirma.

Quanto à actual campanha, Carla Martins frisa que, “pelo número de mulheres tem sido salientada a novidade, já que desde Maria de Lourdes Pintasilgo, em 1986, que não havia uma candidata mulher”. Então, Pintasilgo obteve 7,38% dos votos na primeira volta. A investigadora considera: “As candidatas não têm sido tratadas de forma desigual e não me parece que esteja a haver uma diminuição ou uma desvalorização por serem candidaturas femininas.”

Sem discriminação
Mas Carla Martins adverte ainda que  embora não haja discriminação, há ainda “diferenciação de apresentação e de tratamento jornalístico”. E explica que “isso vê-se nos títulos, com o recurso a expressões como ‘mulheres ao poder’”. Assim como está patente “nas entrevistas, onde há questões que lhes são dirigidas por serem mulheres, perguntam-lhes o que significa, que agenda política têm por serem mulheres”.
Esse tratamento jornalístico diferente, porque destacando o facto de serem mulheres, tem também ele novidades. E dá exemplos: “Houve um perfil de Marisa Matias no Observador que referia que era uma candidata ‘feminista’.” No caso de Marisa Matias frisa que “é salientada também a juventude , mas isto acontecia se fosse homem”.

Entre as inovações que encontra, Carla Martins salienta uma que classifica de “refrescante”. É “as candidatas trabalharem a própria estratégia pelo facto de serem mulheres”. E mais uma vez exemplifica. “Marisa Matias apresenta-se como mulher e teve já a palavra de ordem nos cartazes : ‘Uma por todos’. Não se dilui no masculino. E ela disse na apresentação da candidatura que o país precisa de uma Presidente mulher.” Outro exemplo é que “ambas se assumem como feministas”, o que Carla Martins reputa como “importante”.

A investigadora salienta ainda que ambas as candidatas “apostam na moralização da política, Maria de Belém Roseira tem mesmo como palavra de ordem ‘A força de carácter’, que faz a ligação a qualidade éticas e induz a ideia de que é preciso fazer política de forma diferente”. E as duas candidatas “têm o discurso centrado nos mais pobres, nas causas sociais, nas pessoas, na liderança de proximidade”, questões que “aproximam as candidaturas do que é considerado um modelo feminino de liderança”.

Sugerir correcção