Crista assiste de camarote à devastação

Depois de ter sido a Xerazade d’As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes, Crista Alfaiate enfia-se agora no corpo e nas falas da Marquesa de Merteuil em Quarteto, de Heiner Müller. Até 13 de Fevereiro, no Teatro da Politécnica.

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Durante um ano, a actriz viveu a experiência “incrível” e “angustiante” de esperar pelos desenlaces das histórias que Miguel Gomes e a sua equipa trabalhavam a partir do noticiário de todos os dias JORGE GONçALVES
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Na versão dos Artistas Unidos que ocupa o Teatro da Politécnica entre 6 de Janeiro e 13 de Fevereiro, o cáustico jogo de manipulação e sedução entre Merteuil e Valmont JORGE GONçALVES

Há pouco mais de um mês, e a partir de uma interpretação abusiva de declarações do rei Abdullah da Jordânia – em que este instava a comunidade internacional a enfrentar uma “III Guerra Mundial contra a humanidade” desencadeada pelos recentes ataques terroristas na Europa, em África e na América do Norte –, acendeu-se esse rastilho de pavio curto que é um rumor em tempos de Internet e rapidamente se disseminou a ideia (falsa) de que a ONU teria declarado de forma oficial, através de uma suposta comunicação em Nova Iorque da presidente do Conselho de Segurança Raimonda Murmokaité, o início da III Guerra Mundial. Não aconteceu. Mas essa obsessão não é nova e não falta quem aponte a Nostradamus uma premonição concreta da sua deflagração, nem há escassez de apostas na futura origem de um conflito apocalíptico vindo do Médio Oriente contra o Ocidente, da China contra a Índia, da Rússia ou da Coreia do Norte contra todos.

Na versão dos Artistas Unidos que ocupa o Teatro da Politécnica entre 6 de Janeiro e 13 de Fevereiro, o cáustico jogo de manipulação e sedução entre Merteuil e Valmont – personagens que Heiner Müller retirou do romance epistolar libertino do século XVIII Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, e pôs em Quarteto –, decorre entre um salão antes da Revolução Francesa e um bunker posterior à III Guerra Mundial. O lado esquerdo do palco é ocupado por uma cama em desalinho, um outro cenário de guerras e conquistas, de posse e disputa territorial; à direita, na penumbra, os restos de uma humanidade caída em desgraça, esse bunker parcamente iluminado. De um chega-se ao outro, parece querer sinalizar Heiner Müller.

Nos lugares onde em 1988, num acontecimento CAM/Acarte, estiveram Jorge Silva Melo (que reincide como encenador) e Glicínia Quartin, vemos agora Ivo Canelas e Crista Alfaiate tomando os gestos e as palavras de Valmont, de Merteuil e das várias vítimas do sedutor que os dois vão desfiando com um tão corrosivo quanto displicente prazer destruidor. O texto de Müller esgota-se numa hora ou pouco mais, mas poderia durar dias sem-fim, prolongar-se toda uma vida. “A nossa sublime profissão é a de matar o tempo”, declara Valmont logo de início. “Há tempo a mais (…). O tempo é a falha da criação (…). A igreja colmatou essa falha com Deus, tendo em consideração a plebe; nós, nós sabemos que a falha é negra e sem fundo.” E se há tempo a mais, uma falha sem fundo, os lençóis revoltos tornam-se uma forma de entretenimento tão perversa e ao mesmo tempo tão natural quanto “fazer eclodir uma nova guerra”, um “excelente veneno contra o tédio da devastação”.

“Valmont e Merteuil estão sempre entregues a esta coisa palaciana em que nada têm para fazer. Entretêm-se com este jogo, esta perversão, e a escapar a todas as normas, regras ou formalidades quanto a relações, religião, o que quer que seja”, descreve ao Ípsilon Crista Alfaiate. Dedicam-se a um jogo sexual que é, sempre, um jogo de poder e de corrompimento da pureza, apostam no controlo e na subjugação de qualquer outro, embevecem-se com a não-observância das regras – se “o amor”, palavras da marquesa, “é coisa para criados”, “a felicidade suprema é a felicidade dos animais”. A sua nobreza é, portanto, animalesca, pérfida, de caninos afiados e prontos para o ataque. Para ambos, o mundo à sua volta é pouco mais do que uma colecção de presas que providenciam entretenimento momentâneo, de jovens com “virginal traseiro” saídas do convento, ou mulheres cujo correcto manejamento pode operar o rebentamento de uma guerra, a uma quase emocionada contemplação do mundo através da destruição como exemplo supremo da beleza. Com a virilidade a prometer ser o mais inflamável dos combustíveis. Em Quarteto, a devastação é uma obsessão e está sempre ali ao lado, nunca sai de cena, basta desviar o olhar.

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Essa obsessão, desconfia a actriz que leu o romance de Laclos para mais bem compreender a máquina teatral de Müller, virá talvez de um “fio de raciocínio que é quase como uma escrita directamente do pensamento, perverso, de uma manipulação daquela relação mais intuitiva e mais visceral”. Quarteto dispensa a lógica mais organizada das cartas de Laclos, e afunda-se em ataques e trocas rudes, ferozes, animalescos.

Xerazade
Quarteto é um X no chão a marcar o retorno de Crista Alfaiate aos Artistas Unidos, depois de ter sido dirigida por Silva Melo numa única ocasião anterior, em 2009, quando integrou o elenco que estreou no D. Maria II Esta Noite Improvisa-se, de Pirandello. “Fiquei muito feliz com o regresso aos Artistas Unidos e é também um bom regresso a Lisboa”, confessa ao Ípsilon a actriz que, nos últimos tempos, aprendemos a identificar como “a Xerazade de Miguel Gomes”, a narradora d’As Mil e Uma Noites que vai desvelando histórias de um país em crise para salvar a sua cabeça, enquanto a cabeça de Portugal, claro, se mantém lustrosamente no cepo. É ela a Crista-Xerazade que se evade do castelo do Grão Vizir e se enamora em Marselha-Bagdade de um loiro pouco abençoado pela inteligência, para depois regressar à sua narração madrugada fora e nos apresentar O Inebriante Canto dos Tentilhões que remata a trilogia de Gomes.

Colocada perante um filme de dimensões ciclópicas e imprevisíveis, Crista viveu durante um ano com a experiência “incrível” e “angustiante” de esperar pelos desenlaces das histórias ancoradas na realidade que o realizador e a sua equipa trabalhavam a partir do noticiário de todos os dias. A sua personagem, a Xerazade que uniria todas as crónicas de um país a tentar sobreviver a cada avanço no calendário (sempre que amanhecia, Xerazade calava a narrativa mais ou menos ficcionada, prolongando a sua vida, e era a vez de a gente de carne e osso que lhe alimentava as histórias lutar por não sucumbir de vez), também se transformou desde a ideia inicial – “supostamente estaria sempre na cama com o rei, que seria um camafeu com a voz do Bonga”, lembra a actriz –, moldada pelos relatos e pelos avanços da realidade. “A lógica do processo, e acho que a ousadia tanto do produtor como do realizador e de toda a equipa, mantinha-nos num estado de alerta que podia ser angustiante, por nunca sabermos o que íamos ou não fazer, e afinal não era preciso calcular nada, só era preciso fazer. Foi, por isso, muito prazeroso ao mesmo tempo – tal como ir descobrindo o filme com eles, mesmo que não estivesse a filmar.”

Nova Iorque, Gotemburgo, Lisboa
Crista não exclui o próprio processo da sua ideia do que são As Mil e Uma Noites e daquilo que representam no seu percurso. Foi em consequência do contacto com uma outra trilogia que decidiu investir, em 2011, numa intensa experiência de teatro em Nova Iorque. Depois de se ter maravilhado ao assistir na Culturgest a The Sound and the Fury, a partir de William Faulkner, segunda investida da companhia Elevator Repair Service no domínio do grande romance norte-americano após Fitzgerald e antes de Hemingway ("Tinha uma dinâmica muito boa que juntava o texto a um jogo de cena muito acelerado e muito jocoso da aproximação aos clássicos, apesar de se manterem numa linha também meio coreográfica”), a actriz contactou os nova-iorquinos e rapidamente seguiu para os Estados Unidos ao abrigo de uma bolsa do programa Inov-art.

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Acontece que o estágio a que se propunha, por circunstâncias da própria orgânica dos Elevator Repair Service – “eles mantêm-se muito tempo com a mesma peça, fazem-na durante dois ou três anos, e na altura estavam a fazer reposições”, conta –, não encontraria a companhia num período especialmente criativo. Mas a grande proximidade com outras estruturas de um circuito teatral pouco interessado em perpetuar convenções levaria a que o seu estágio fosse estendido ao Wooster Group, aos New York City Players de Richard Maxwell e à House of Straddle de Tina Satter, acabando por fazer assistência de encenação e uma pequena participação na adaptação por Satter de A Gaivota, de Tchékhov, que foi elevada aos píncaros pela crítica norte-americana. A facilidade de circulação entre companhias de referência, confessa Crista, “ressuscitou um género de atitude que aqui na altura era mais difícil”: ir directamente ter com as companhias dizendo aquilo que gostaria de fazer ou de explorar.

Esse espírito e essa energia foram parcialmente sugados pelo facto de Crista ter já acordado um espectáculo com João Pedro Vaz – que primeiro a tirou “da escola”, ao levá-la para fazer Mapa, em 2005, a partir de um poema de Peter Handke –, pelo que não precisou, no seu regresso a Nova Iorque, de se ir apresentar ou anunciar as suas intenções ao teatro português. Tal como agora, acabada de voltar de uma experiência “mais performática” de quatro meses com a coreógrafa argentina Constanza Mackras na Ópera de Gotemburgo, onde esteve a preparar e a apresentar Soft Cell, Crista chega para se entregar à pele de uma outra jogadora, Merteuil. Que, na verdade, quer a pele para a esfregar na de Valmont, cedendo à “escravidão dos corpos”. Mas não cede. Fazê-lo, reconhece a própria, seria reduzir-se a “moça de estrebaria”. E mesmo a um metro de um bunker, há que manter a postura.

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