Agricultura biológica: se a Europa se “precipitar” há risco de não conseguirmos alimentar toda a gente

Agricultores convencionais preocupados com o ritmo da transição, enquanto os biológicos alertam que o actual modelo é já insustentável. O caso do Sri Lanka veio aquecer o debate.

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Produção de alfaces na zona de Castro Marim Miguel Manso

A desastrosa e trágica experiência do Sri Lanka na transição para a agricultura biológica durou pouco mais de meio ano – sete meses, mais precisamente, antes de ser interrompida. E, apesar das muitas explicações sobre o seu fracasso, que se ficou a dever essencialmente à ausência de um período de transição, o caso tem sido pretexto para atiçar ainda mais o debate sobre o futuro da agricultura num planeta que em 2050 terá de alimentar perto de dez mil milhões de pessoas.

Só a agricultura convencional pode garantir alimentos para todos? Uma transição para a agricultura biológica, mais ou menos gradual, será condenar a população mundial à fome? As opiniões dividem-se e de forma radical, sobretudo numa altura em que a política da União Europeia (UE) se encaminha nessa direcção.

A estratégia do Prado ao Prato, integrada no Pacto Ecológico Europeu, estabelece como objectivo (não vinculativo) que os Estados-membros da UE tenham 25% da área agrícola em regime biológico até 2030 e reduzam o uso de pesticidas em 50% e o de fertilizantes em 20% (vinculativo). Em Portugal, o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC) aponta para a meta de 19% de área em regime biológico até 2027.

“A questão de base é se o modelo de que estamos a falar [convencional] tem possibilidade de continuidade. E não tem. A agricultura moderna prometia uma série de soluções para a humanidade, mas está repleta de problemas. É absolutamente premente encontrarmos alternativas”, diz Alfredo Cunhal Sendim, agricultor biológico da Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, Alentejo, e um dos grandes promotores da agroecologia em Portugal.

Perante o debate desencadeado pelo caso do Sri Lanka — onde a proibição do uso de fertilizantes e pesticidas foi imposta por decreto pelo Presidente que acabou por ter de fugir do país após uma revolta popular provocada pela fome e crise económica que aquela imposição ajudou a consolidar — e lembrando que “60% das pessoas do planeta vivem da agroecologia”, Cunhal Sendim considera que “assusta a violência com que o sistema tenta agarrar-se a esta ideia: aquilo que nos mata é para continuar e não há outra solução”.

O Sri Lanka “demonstra que, se fizermos a coisa de forma precipitada, não será possível alimentar toda a gente”, afirma, por seu lado, Felisbela Campos, da Syngenta, uma das gigantes de produtos para a agricultura, baseada na Suíça e presente também em Portugal. “Vai sempre haver uma percentagem de agricultura biológica, mas não é o que vai alimentar a humanidade. Se fizemos essa transição, o mundo não sobrevive.”

Os pesticidas e adubos químicos

No centro do debate está a utilização de maior, menor ou nenhuma quantidade de produtos fitofármacos, ou seja, pesticidas e adubos químicos, e as consequências que isso tem para a qualidade do solo e das águas.

A Estatísticas Agrícolas 2021, divulgadas a 22 de Julho pelo Instituto Nacional de Estatística, indicam que “Portugal é o país da UE com menor uso de fertilizantes minerais (azoto e fósforo)”, com um consumo de 31 quilos por hectare, enquanto a média europeia é de 72,6 quilos por hectare. Já no caso dos pesticidas, o valor nacional situa-se acima da média europeia, tendo sido vendidos 2,3 quilos de substância activa por hectare da Superfície Agrícola Utilizada (SAU).

Há novas tecnologias e novos produtos a serem desenvolvidos nos laboratórios, mas, alerta Felisbela Campos, “isto tem de se feito de forma muito inteligente, introduzindo os novos, mas não prescindindo dos antigos”. O problema é que “está a ser feito de forma muito precipitada”.

O que acontece é que “estão a acabar com ferramentas antes de haver alternativas já experimentadas no mercado”. E como “a Europa é muito regulamentada, a colocação no mercado de substâncias activas de perfil biológico demora imenso tempo”. O vazio que, entretanto, se cria “faz com que estejamos a caminhar para trás e não para a frente”.

Uma opinião partilhada pelo agricultor José Palha, produtor de milho no Ribatejo e Alentejo. “Vejo [a estratégia europeia] com algumas reservas. É sabido que a agricultura biológica produz menor quantidade de alimentos por área. Uma planta, se for tratada, vai produzir mais, isso é evidente. Há uma corrente ambientalista que está a instalar-se numa sociedade cada vez mais urbana, e a União Europeia é, se calhar, o exemplo máximo disso, em que a política relativa aos produtos fitofármacos é a mais restritiva do mundo.”

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Campo agrícola em Santarém daniel rocha

Preocupa-o, tal como a Felisbela Campos, o tempo que os processos demoram. “Uma matéria activa para poder estar aprovada na EU passa por dez anos de testes e ensaios e é aprovada por todas as agências europeias.”

Mas preocupa-o ainda mais o cenário actual. “O conflito da Ucrânia com a Rússia veio pôr a nu esta fragilidade: a Europa acha que deve evoluir por um caminho de agricultura biológica, mas [com as previsíveis quebras na produção] ficará totalmente dependente da importação de alimentos fundamentais para a alimentação, quer humana quer animal. Está a ir por um caminho perigoso.”

O risco de não termos alimentos no futuro é uma preocupação que tem em comum com Alfredo Cunhal Sendim. Mas enquanto José Palha fala no próximo ano, o agricultor biológico pensa num futuro mais longínquo, acreditando que a agricultura convencional está a destruir a fertilidade dos solos e a pôr em causa a capacidade de produzirmos alimentos daqui a algumas décadas (ou já hoje, em muitas partes do planeta que deixaram de poder ser usadas para a agricultura).

O solo, que é a camada superficial da crosta terrestre, forma-se lentamente – cerca de um centímetro em cada 100 anos – por isso, é essencial preservá-lo, evitando práticas agrícolas que levem à diminuição da matéria orgânica, e à compactação e salinização, sendo que esta se dá também por uso excessivo de fertilizantes.

“Todos os anos há uma perda bruta de solo fértil e são abandonadas áreas que foram agrícolas”, alerta Isabel Dinis, agrónoma, especialista em agricultura sustentável e responsável pelo projecto Divulgar Bio. Poderia já ter-se avançado mais na promoção da agricultura biológica, mas, lamenta, “esta não tem sido alvo do mesmo tipo de investimento que a industrial”.

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Alfredo Cunhal Sendim na Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo Rui Gaudêncio

Os agricultores que querem converter-se ao biológico enfrentam ainda problemas em conseguir sementes certificadas ou informação sobre métodos de combate às pragas e doenças, afirma. “É preciso ter um grande conhecimento das relações entre insectos e plantas” para se poder fazer um controlo eficaz e evitar perdas da produção.

Os solos

Uma área vital e a merecer mais atenção é, portanto, a da regeneração dos solos. “O estado dos nossos solos [em Portugal] é preocupante. Há razões naturais, já que muita chuva concentrada em pouco tempo leva à erosão. Temos já poucas áreas de bons solos agrícola, e para o biológico, ele tem de ter pelo menos 3% de matéria orgânica, que tem de ser incorporada”, afirma Isabel Dinis.

Alfredo Cunhal Sendim tem essa experiência desde há muitos anos no Freixo do Meio, onde recuperou os solos, devolvendo a propriedade ao montado tradicional. “Gosto de pensar no solo como uma bateria. Tem de ter energia para poder funcionar. Com a Revolução Verde encontrou-se uma maneira muito rápida de carregar a bateria, e assim consigo uma aceleração rápida. Mas consigo este milagre por quanto tempo? Muito pouco. Foi possível aumentar a produção de milho de seis toneladas por hectare para 24. Consigo tirar 24 toneladas por hectare até salinizar os solos. Sim, porque vão salinizar. Aconteceu em todo o mundo.”

“A pressão sobre o solo é enorme”, afirma Cunhal Sendim, sendo que “a maioria dos cereais é para alimentar animais, vamos buscar a proteína da forma menos eficiente possível.” Alternativas? As leguminosas, claro, mas não só, há todo um universo de proteína obtida por “fermentação através de fungos, ou por algas” que é preciso explorar.

É por isso que não concorda com as conclusões de um estudo divulgado no ano passado e realizado por uma equipa de cientistas de Portugal e da Áustria, segundo o qual não vai ser possível alimentar toda a humanidade em 2050 apenas com a agricultura biológica tal como é praticada hoje. Para obter o azoto, indispensável à fertilização do solo, seria necessário aumentar muito a produção de leguminosas e de estrume, sublinha o estudo – quer uma coisa quer a outra implicariam mais área agrícola e de pastagem, agravando o problema da desflorestação.

Para um solo exangue, sim, é necessário muito adubo, afirma Cunhal Sendim, mas se o solo já tiver recuperado a sua saúde e fertilidade, ele torna-se naturalmente mais produtivo, e as quebras de produção serão gradualmente menores. Também o argumento de que são necessários muito mais animais (com as consequências para o aumento dos gases de efeito de estufa que isso tem) não o convence.

Não são precisas toneladas de estrume. Quem faz o solo não são os animais, são as árvores, são as folhas”, garante. “Gilles Lemieux [que foi professor na Universidade Laval, no Quebeque] consegue criar um solo em cinco anos com base em matéria orgânica e não em animais. Os animais têm de ser um complemento. O nosso planeta chegou ao grau de fertilidade que atingiu com um número muito limitado de animais.”

A grande indústria de produtos para a agricultura está consciente destas preocupações e começa a apostar noutras linhas de produtos como os bioestimulantes de base não química e na edição de genoma.

“Tem de haver um equilíbrio e temos de procurar modos de produção muito mais tecnológicos, com uma boa utilização da água e dos factores de produção”, defende Felisbela Campos, da Syngenta, referindo-se também a ferramentas inovadoras na área digital que poderão ajudar os agricultores. “O consumidor valoriza o bio e ele tem de existir, mas os custos de produção são mais caros e é utópico pensar que é com ele que matamos a fome.”

O agricultor José Palha acredita nas soluções que a ciência trará e considera que “a agricultura convencional bem feita, utilizando os produtos nas doses recomendadas, e com alguns cuidados, como a promoção dos polinizadores”, pode não só contribuir também para o aumento da biodiversidade e para os ecossistemas, como para um solo saudável e produtivo, que é, obviamente, uma preocupação de todos os agricultores. Cunhal Sendim é taxativo: “A agricultura de precisão só vai minimizar o problema. Estamos a cavar um buraco. O sistema alimentar ocidental está a colapsar.”

Reconhece, contudo, que é impossível fazer uma transição abrupta como se tentou fazer no Sri Lanka. Um solo precisa de tempo. A rotação de culturas é essencial, afirma, por sua vez, Paulo Pereira, especialista em política ambiental e solos da Universidade Mikolas Romeris, na Lituânia. “Com culturas intensivas de milho ou trigo, há um ponto em que os solos estão exaustos. O cultivo industrial não lhes permite recuperar desses impactos e é isso que obriga a que se apliquem mais nutrientes.”

Quando lhe falam em segurança alimentar hoje, Paulo Pereira vê um paradoxo: “Se destruirmos os ecossistemas, não haverá segurança alimentar no futuro.” Por isso, a palavra-chave é diversificação da produção. Com as alterações climáticas e um cenário de chuvas intensas e concentradas em períodos mais curtos, a erosão tende a aumentar e “o coberto vegetal vai ser menor”. Deixa um aviso: “O solo é um recurso finito.” Sem ele, não alimentaremos o mundo de hoje e muito menos o de amanhã.