Romance de dois dias no palco

Juntos – Ao Vivo no Theatro Circo é o registo do encontro em palco entre Sérgio Godinho e Jorge Palma. Depois dos muitos encontros desde os anos 1970, a partilha de canções num espectáculo pensado de raiz. Palma e Godinho descobertos na música um do outro.

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Sérgio Godinho e Jorge Palma conheceram-se na década de 1970 Nuno Ferreira Santos

A amizade é longa de décadas e o estatuto como dois dos mais importantes cantautores da música portuguesa é intocável. Sérgio Godinho e Jorge Palma conheceram-se na década de 1970. Partilharam estúdios e partilharam palcos. Cruzaram-se, por exemplo, no espectáculo Filhos de Rimbaud, na década de 1990, no álbum de releitura das canções de Sérgio Godinho, Irmão do Meio, e, no ano passado, na Festa do Avante, para a qual Palma convidou o autor de A noite passada. Foi precisamente desse momento que germinou aquilo que agora nos chega.

Juntos – Ao Vivo no Theatro Circo, edição disponível em CD e em CD/DVD, é o registo desses espectáculos em que palavras e melodias são partilhadas entre os dois, com acompanhamento de Nuno Rafael (guitarra), João Cardoso (teclas), João Correia (bateria), Nuno Lucas (baixo), Pedro Vidal (guitarra) e Sérgio Nascimento (bateria). Os primeiros concertos tiveram lugar no Centro Olga Cadaval, em Sintra. Pelo meio houve, entre outros, o Super Bock Super Rock, em Lisboa, e nos dias 24 e 25 de Setembro Palma e Godinho passaram pelo Theatro Circo, em Braga, onde o encontro foi registado para a posteridade.

Em 2016 há mais: 25 de Fevereiro no Coliseu de Lisboa, 4 de Março no do Porto. E, se tudo correr como desejado, 2016 será também o ano em que conheceremos o Sérgio Godinho romancista – o romance está a ser escrito, mas Godinho não pretende revelar muito para além do desejo de o dar à estampa no próximo ano. 2016 será ainda o ano, aguardemos, em que Palma descobrirá a que novas canções a conduzem a musa. Está curioso por saber, confessa quando recebe o PÚBLICO em sua casa para uma conversa a três.

Agora, porém, é tempo de apreciar as trocas que vemos Jorge e Sérgio fazerem perante nós com saber e elegância: o primeiro a “atacar” O primeiro dia do segundo, o segundo a atirar-se a Dá-me lume, antes de se reunirem novamente numa e noutra – juntos, obviamente.

Quando descobriram a música um do outro?
Jorge Palma (JP) – No meu caso foi em 1971, numa sessão que me marcou muito no Cinema Roma. Tu já estavas exilado, eu ainda não. Fui convidado e fico a saber que existem estes dois senhores, o Sérgio Godinho e o José Mário Branco, na apresentação dos seus dois discos.

Sérgio Godinho (SG) – Eram os nossos dois primeiros discos [Os Sobreviventes e Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades], que foram gravados ao mesmo tempo, embora não tenham saído ao mesmo tempo. Antes saiu um EP com quatro canções, Romance de um Dia na Estrada.

JP – Quando vou [exilado] para a Dinamarca, já tenho na cabeça e no coração as músicas do Sérgio. Em Copenhaga, quando fui convidado para ir a um programa de rádio, peguei na guitarra e toquei uma música do Pré-Histórias, Pode alguém ser quem não é. Nesses dois anos, o trabalho do Sérgio marcou-me indelevelmente. Percebi que era possível fazer música de que gostava profundamente, com o mesmo tipo de influências que eu tinha, em português e com linguagem que me dizia respeito. Foi uma grande escola e foi amor ao primeiro ouvido.

E o Sérgio, quando descobriu o Jorge Palma músico?
SG – O Jorge começou mais tarde e eu conheci-o com o Té Já [1977]. Ouvi o álbum e senti que tinha tudo a ver com a minha linguagem. Escrevia bem, cantava bem e, de facto, havia um universo que não era igual, nem tinha que ser, mas onde reconhecia uma proximidade.

JP – Ligava-nos a maneira de estar, a irreverência e um ideal acima de todos que é a liberdade.

SG – Também partilhávamos influências musicais. Dylan é completamente consonante, como Beatles, Stones ou Doors. A música francesa também foi importante. Vi o Jacques Brel ao vivo. O [George] Brassens. Outra música que me influenciou muito foi a brasileira, desde antes dos tempos da bossa nova, porque se ouvia em minha casa. E o aparecimento do Zeca também foi importante para mim.

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JP – A simpatia pela música francesa tocou-te mais cedo do que a mim, mas quando me apercebo começo a levar mais a sério e a estudar. Sobretudo as canções do Brel, mas também do [Leo] Ferré.

SG – E há também o Gainsbourg, que aparece nessa altura.

JP – Gainsbourg que eu vi em Paris e de que não gostei. Muita gente dizia-me que eu era parecido com o Gainsbourg e eu não gostava nada. Vi um espectáculo dele no auditório da Radio France e o gajo teve uma atitude com o público que se percebe depois que é pose. O público a assobiar e ele a mostrar-lhes o cu. Mas agora tenho aí muitas coisas do Gainsbourg. Já gosto mais dele.

Serge Gainsbourg dizia que gostaria de ter sido pintor mas que chegara tarde demais para isso. Por isso, ficara condenado a dedicar-se a essa arte menor que era o ofício de escrever canções. Não o vêem certamente como arte menor. O que torna tão especial esse formato que se perpetua através dos tempos a que chamamos canção?
SG –São duas artes que têm de se conjugar de forma a que pareçam um corpo único. Foram publicadas livros com as minhas letras e muito bem, já fizeram versões instrumentais das minhas canções e muito bem, mas, de facto, o objecto só está inteiro quando aquela letra joga com aquela música de uma forma que faz parecer que não pode haver outra letra para aquela música e vice-versa. Essa magia, digo magia porque a música é tão inexplicável, pode dar tantos, infinitos resultados. Além disso, não é palpável. A música anda no ar. Ouvimo-la, sentimo-la, faz mexer o nosso corpo.

JP – Sempre que me perguntam o que é mais importante, se é a música ou a letra, penso para mim que é uma pergunta que não faz sentido. Há uma ópera do Richard Strauss, Capriccio, que é quase toda sobre o que é mais importante, se a poesia, se a música, e não se chega a conclusão nenhuma.

O que vos motivou a juntarem-se nestes concertos de que agora resulta um CD/DVD?
SG – Somos amigos de casa e, a partir de determinado momento, começámos a convidar-nos mutuamente. O Jorge convidou-me primeiro para um disco [Qualquer Coisa Pá Música, 1979] para cantar no Terra dos Sonhos. Pelo meio foram havendo palcos e, quando o Jorge me convidou para a Festa do Avante [em 2014], teremos dito um ao outro ‘temos que fazer qualquer coisa’. Como não havia agenda agregada, como [agora] não estávamos a compor ou no estúdio, havia disponibilidade de parte a parte. Era a altura.

E como se prepara esse encontro? Havia ideias pré-definidas sobre que fazer dos concertos?
SG – Começámos por pensar: como vamos fazer isto? Com músicos? Sim. Que canções? Aqui o critério não foi muito extraordinário: uma lista alargada de canções que fossem compatíveis com os nossos universos, mesmo que uma ou outra fugisse de um universo mais reconhecível, como Os Conquistadores, que não será tanto o universo do Jorge. À parte isso houve três ou quatro que eu disse logo que queria. A Dá-me lume ou o Frágil, que já tinha um pré-arranjo feito para um 10 de Junho no Terreiro do Paço.

JP – A noite passada já a tenho cantado com o Sérgio, O primeiro dia também. Mas agora queria ter mais protagonismo, nomeadamente abrir a canção.

SG – Chegámos logo à conclusão que tínhamos que estar em todas. Quando fiz o Três Cantos havia algumas canções só comigo, outras só com o Fausto, outras só com o Zé Mário [Branco]. Mas aqui não fazia sentido. Na divisão da letra das canções, por vezes, demos mais protagonismo ao outro. Eu dei mais ao Jorge na Noite passada, também para não estarmos sempre a repetir a fórmula do pingue-pongue. E pelo gozo, que acho que é gozo também para o ouvinte, de ser o outro a começar a canção. Está a ouvir-se uma coisa reconhecível mas, ao mesmo tempo, não é bem a mesma coisa, o que dá logo outra leitura.

São protectores em relação a algumas das vossas canções? Há algumas que carreguem demasiado próximas e que não consigam imaginar cantadas por outros?
SG – Acho que há certas canções que não vão tão bem com o Jorge, ou que não entravam bem dentro deste contexto musical. E vice-versa. Achei que uma canção minha muito icónica, a Com um brilhozinho nos olhos, não fazia parte deste projecto. Seria um bocado forçado. Estas coisas sentem-se, são mais intuitivas que racionais. Mas nunca pensei ‘esta canção é minha e não vou partilhá-la com ninguém’. Nem agora, nem antes.

A apresentação de um original, Caso for esse o caso, era uma vontade vossa, uma forma de oferecer algo novo, partilhado, neste espectáculo?
JP – O Sérgio adiantou-se. Perguntou-me o que achava de uma canção que estava a fazer. Falou na primeira pessoa do plural, ‘nós avançamos sozinhos pela rua’. Fez o retrato de um percurso que nos é comum.

SG – Começou a nascer do conceito primeiro de errância, a disponibilidade para as viagens interiores e exteriores. Como diz o refrão, ‘errado é uma miragem no deserto / o certo é que por ela sempre em água mergulhamos’. Se calhar é uma miragem, mas mergulhamos nela e já há água. Mergulhamos nessa miragem que é a nossa própria vida.

Para além da interpretação diferente, por cantaram os dois, algumas canções surgem também com arranjos diferentes dos que conhecemos. Inevitável, dada a natureza inédita do espectáculo?
SG –Tenho canções com arranjos diferentes, feitos com músicos que foram vindo e que, de certo modo, as renovaram. A Espectáculo - “quando / tu me vires no futebol” -, foi composta bastante lenta e quando os Clã pegaram nela fizeram uma versão muito roqueira. Isso deu-me gozo para depois retomar a canção com esse feeling. Uma das características das artes performativas é poderem ser reinventadas de uma série de maneiras.

JP – A Encosta-te a mim [tal como Espectáculo, não incluída em Juntos] começou por se chamar Balada celta porque a início eu ouvi nela uma gaita-de-foles. Depois a banda gravou aquela malha de guitarra, uma malha muito feliz que à segunda nota já te apanhou, e seguiu outro caminho. Às vezes tento plagiar a música de alguém e acaba por sair uma coisa completamente diferente. Já tentei plagiar canções do Paul Simon e de uma delas saiu a Deixa-me rir. Isso abre imensas janelas, porque desvias-te naturalmente do plágio. Eu tentei imitar o Sérgio em Na Terra dos Sonhos, que acabámos por cantar juntos.

A primeira canção que tocam após o encore é Portugal, Portugal e o concerto termina com Liberdade, o Primeiro dia, A gente vai continuar e O Bairro do Amor. Canções de reivindicação, de renascimento, de tenacidade, de utopia. O país, Portugal hoje, a imiscuir-se no espectáculo?
SG – Numa canção ou noutra, as coisas podem ganhar uma ressonância diferente. Dancemos no Mundo, por exemplo. De repente fez sentido que falasse dos migrantes e dos refugiados porque a canção foi criada com essa ideia, depois de ter visto uma reportagem sobre casais que não se podiam encontrar por questões ideológicas, religiosas, rácicas. As canções ganham muitas vezes novos sentidos, mas a música também tem muita importância na escolha do alinhamento. Se for um alinhamento ideológico, não chega.

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