Neste Natal, o bacalhau ou o arroz doce podem ser um presente envenenado
Carnes ou legumes mal cozinhados são uma possível fonte de “intoxicações alimentares”. Também as sobremesas devem ser preparadas com especiais cuidados, de modo a evitar episódios desagradáveis. Numa época de festas, fomos pedir alguns conselhos a uma especialista em segurança alimentar.
Em plena época festiva, entre Natal e Ano Novo, a azáfama com os preparativos intensifica-se e o tempo parece cada vez mais curto para que tudo fique pronto a horas. Há sempre presentes de última hora que ainda estão por comprar e há ainda que preparar toda a ceia, desde o tradicional bacalhau ou peru, bem como doces e sobremesas, sem esquecer o bolo-rei que não pode faltar na mesa que fica quase sempre composta até Janeiro. Nesta luta contra o tempo, todas as compras são feitas “a correr”, cozinha-se em maiores quantidades e diversos pratos exigem alguma complexidade na sua preparação. Por esta razão, a probabilidade de que ocorram contaminações nos alimentos é maior.
Mas as complicações alimentares são mais frequentes nesta altura apenas porque se faz mais comida? Paula Teixeira, professora na Universidade Católica do Porto e especialista em segurança alimentar, diz ao PÚBLICO que não é bem assim: “Nesta altura, os problemas [alimentares] que existem são os mesmos que acontecem no resto do ano. A questão é que recebemos muitas pessoas e isso exige mais cuidados”, explica, sublinhando que algumas regras de segurança e higiene são por vezes esquecidas.
Os problemas começam desde logo no carrinho das compras. De forma a evitar a contaminação cruzada dos alimentos, é fundamental fazer uma distribuição organizada de todos os produtos. Alimentos previamente cozinhados e alimentos crus devem estar separados: “Separar as carnes [cruas] daquilo que já está pronto, como saladas ou pão, por exemplo”, ilustra a professora, explicando que o que se pretende é evitar a passagem de microorganismos, que podem ser bactérias, de uns alimentos para os outros. Também no saco das compras deve fazer-se uma arrumação organizada. É importante não ficar aflito com a quantidade de produtos que se junta na caixa do supermercado e que incentiva uma arrumação rápida e aleatória, refere a especialista.
Ainda no supermercado, Paula Teixeira lembra que é importante ter cuidado na escolha dos alimentos: “É fundamental ser observador para perceber a sua frescura. Há indicadores, como a cor da carne, ou o brilho do peixe, bem como os legumes que podem estar amarelecidos ou com zonas repisadas”. É ainda importante ter em conta a hora a que se vai às compras. A investigadora aconselha as primeiras horas do dia, quando os produtos estão mais frescos e menos remexidos.
Ao chegar a casa, a arrumação no frigorífico também exige algumas preocupações. Tudo o que vai para o frio deve ser guardado com uma determinada ordem, já que “a distribuição da temperatura no nosso frigorífico é diferente em cada prateleira”. Aliás, o frigorífico deve funcionar a uma temperatura de 4 graus celsius, sendo que as zonas mais frescas costumam ser as prateleiras inferiores. As temperaturas frias são fundamentais para que as bactérias não se multipliquem. Na maior parte dos frigoríficos, costumam concentrar-se nas prateleiras mais baixas, e é precisamente nessa zona que deve guardar-se “a carne, o peixe e tudo aquilo que se estraga com mais facilidade”. Além disso, é preciso ter em conta que “estão crus e podem libertar sucos, mesmo estando embalados, atingindo assim outros alimentos que já estão cozinhados”.
Neste caso, o problema é que esses microorganismos vão concentrar-se nesses alimentos já preparados e, uma vez que serão apenas aquecidos, não receberão calor suficiente para evitar uma possível contaminação. Paula Teixeira lembra que as temperaturas são as nossas maiores aliadas na prevenção de toxinfecções alimentares: “a refrigeração para as bactérias não se multiplicarem e as temperaturas altas para as destruírem”.
Imediatamente acima da carne e do peixe pode ficar o fiambre ou outras charcutarias compradas à fatia, por exemplo, e nas zonas intermédias pode ser guardado o leite e lacticínios (queijo fatiado ou iogurtes, entre outros alimentos). Nas prateleiras superiores, podem ficar os alimentos já cozinhados, como o arroz, que devem estar hermeticamente protegidos. Os legumes devem guardar-se nas gavetas; e na porta, zona menos fresca, pode ficar a água, ovos, manteiga ou compotas. No fundo, “é fundamental evitar que haja contaminação no frigorífico, por isso tudo deve estar muito bem embalado e arrumado”. Até porque, por vezes, “aquilo que já foi comprado há mais tempo vai ficando para trás. As pessoas esquecem-se e depois acaba o prazo de validade. É importante ter o cuidado de colocar o que tem mais tempo na frente”.
Na hora de preparar o jantar, há que lavar tudo muito bem. “As mãos, os utensílios que usamos, os legumes, os frutos... Tudo deve ser muito bem lavado”, explica, lembrado que os cozinhados devem atingir as temperaturas altas e o tempo de cozedura suficiente. Paula Teixeira salienta que o típico peru de natal, por exemplo, é um dos pratos que muitas vezes pode estar contaminado. “Os alimentos não são estéreis, as pessoas devem ter a noção de que há alimentos nos quais podem existir microorganismos patogénicos. Podemos contar com eles, mas temos de fazer de tudo para destruí-los”. E o peru, por exemplo “deve estar cerca de 5 horas no forno”. Só porque está tostado por fora não quer dizer que esteja pronto a comer. O tempo é variável, mas a investigadora aconselha que “um peru de 5 quilos, por exemplo, deve estar mais ou menos 5 horas” no forno. O bacalhau, por ser seco e demolhado, “apresenta menos riscos”. Neste prato, a principal preocupação é “lavar muito bem os legumes”.
Chegando aos doces e sobremesas, também existem riscos que podem ser evitados. Neste caso, um dos problemas que pode ocorrer é o doce estar contaminado com salmonelas, frequentemente associadas aos ovos. “Mas as salmonelas são destruídas se o ovo for bem cozinhado. O maior problema são as sobremesas de colher que levam ovos que praticamente não vão ao calor”, e que devem, por isso, receber especial atenção. Aletria, arroz doce ou leite-creme são alguns dos casos mais problemáticos. E como verificar se um ovo está bom? Paula Teixeira diz que a olho nu não é possível e sublinha que “os testes que fazemos em casa para ver se um ovo está bom, como o teste do copo, são um mito. Um ovo pode ir ao fundo e estar contaminadíssimo”. Então, como nos devemos precaver? A investigadora não hesita: “cozinhar bem. A temperatura alta é neste caso a nossa melhor aliada”, explica. “Há determinados microorganismos que podem não ser destruídos, mas a maior parte deles são com as altas temperaturas. Estes problemas de intoxicações alimentares resultam muitas vezes de erros na preparação e na manipulação, e poderiam ser facilmente evitados. São fáceis de evitar se cumprirmos as regras todas: lavar bem, não misturar alimentos cozinhados, refrigerar tudo o que tem de ser refrigerado e aquecer muito bem. Estas são regras de ouro”, esclarece a investigadora.
As toxinfecções alimentares, que vulgarmente são designadas como “intoxicações alimentares”, podem ocorrer quando se ingerem microrganismos patogénicos, ou as suas toxinas, através dos alimentos. Mesmo não sendo visíveis a olho nu, estão presentes em todo o lado, mesmo em alimentos aparentemente frescos, ou nos utensílios que se utilizam para cozinhar.
Vómitos, dores no corpo, febres e diarreias são alguns dos sintomas associados a este tipo de patologia. Estes podem apresentar gravidade variável. Mas se persistirem, a investigadora aconselha que a situação seja vigiada por um médico, sobretudo quando se trata de crianças, idosos e grávidas, considerados grupos de risco. Nestes casos, explica Paula Teixeira, “é importante estar atento, porque vómitos e diarreia podem levar rapidamente a uma situação de desidratação”. No caso das grávidas, um eventual episódio de contaminação pode culminar numa situação dramática. A ingestão da bactéria Listeria monocytogenes, presente em alguns legumes crus ou mal confeccionados, pode provocar, além de meningite, um aborto espontâneo.
Mas, afinal, podemos comer de tudo, ou existem alimentos que devem ser evitados? A investigadora desdramatiza, dizendo que a nível da segurança alimentar não é necessário fazer qualquer restrição. No entanto, esclarece que “é importante ter conhecimento dos riscos que determinados alimentos representam”. Como diz aos seus alunos: “A alimentação tem riscos, como qualquer coisa na vida”.
Texto editado por Romana Borja-Santos