Uma cerimónia de adeus
Quando soube que estava morto, o escritor e cineasta brasileiro João Paulo Cuenca perdeu a bússola, escreveu um romance e fez um filme.
Antes de lhe surgir a ideia para Descobri que Estava Morto (Caminho), João Paulo Cuenca estava a trabalhar num outro livro cujo primeiro capítulo saiu no Brasil, em 2012, no número especial da revista Granta dedicada aos Melhores Jovens Escritores Brasileiros. “Era uma ficção distópica sobre o Rio de Janeiro, uma ficção de alguém olhando a cidade 20 anos na frente. Estava adiantando a queda. Eu achava que a crise viria nos anos 2020 e que, nesses anos muito para a frente, se olharia para trás, para o Brasil do início dos anos 2010, e se falaria: como éramos ingénuos. Só que tudo caiu muito antes e uma dessas coisas que caiu fui eu. Quando descobri que estava morto e não consegui parar de pensar nisso”, conta o escritor brasileiro, que nasceu no Rio de Janeiro em 1978 mas por opção, nos últimos anos, abandonou a cidade e está a viver em São Paulo.
Em 2011, João Paulo Cuenca vivia por cima de um restaurante numa das ruas mais movimentadas do Rio de Janeiro. “Tive uma confusão no meu prédio, tinha uns vizinhos barulhentos que ocupavam ilegalmente o terraço do térreo, faziam muito barulho e não me deixavam existir. Um dia peguei uma sacola de lixo cheia de correspondência postal e joguei na cabeça deles. É exactamente como está no início deste livro”, conta o escritor ao Ípsilon, sentado num café de Lisboa. “Fizeram queixa contra mim por arremesso de objecto e crime de ameaça. Por causa disso, descobri que estava morto. O policial levantou minha ficha e lá estava dizendo que tinha um registo de ocorrência de óbito no dia 14 de Julho de 2008.”
Quando o polícia lhe perguntou onde estava naquele dia em que tinha sido encontrado morto num prédio devoluto da Lapa, João Paulo Cuenca foi vasculhar e-mails e percebeu que estava a lançar, em Roma, o seu segundo romance: O Dia Mastroianni (Caminho). Uma mulher, Cristiane Paixão Ribeiro, identificou o corpo – que se sabe hoje ser de Sérgio Luiz de Almeida, um fugitivo da justiça brasileira – como sendo o do escritor.
A história é digna de um livro e de um filme. E foi isso que o autor fez com ela. Escreveu o romance Descobri que Estava Morto, fez um argumento e realizou a sua primeira longa-metragem: A Morte de J. P. Cuenca, que se estreou no Festival do Rio e foi seleccionada para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e para o CPH:DOX – Copenhagen International Documentary Film Festival.
“Quando alguém usa o nosso nome, a nossa filiação, a nossa data de nascimento, tudo o que faz você ser quem é e todas as suas coordenadas no mundo, e morre com isso tudo, o que sobra? Simbolicamente você perde a bússola”, diz João Paulo Cuenca, que depois deste episódio ficou extremamente desconfiado. Por isso partiu para a criação e fez da questão identitária o principal tema deste romance onde tenta dar respostas a algumas perguntas. “Que identidades são criadas e construídas a cada dia no Rio de Janeiro? Que identidades são criadas ou destruídas a cada vez que você se apaixona por uma mulher? Ou na sua vida? O livro e o filme acabam levantando estas questões, como uma investigação de detective filosófica, mais existencial.”
João Paulo Cuenca sofre de depressão, o que nele se manifesta numa extrema falta de vitalidade. “Não é tristeza. É vontade de não fazer nada. E para mim era como se essa sensação da depressão se tivesse manifestado em algo de concreto: eu já morri mesmo. Essa falta de vitalidade que a depressão sempre me provocou estava impressa num documento”, explica. A partir desse momento começou, pouco a pouco, a desapegar-se de valores e de coisas – relacionados com o Rio de Janeiro, com a sua geração, com o círculo literário, o casamento – que antes tinha em altíssima conta. “Comecei a detonar tudo, a virar um terrorista, a não respeitar nada, a ter desprezo mesmo por alguns valores. Como se tivesse virado um demolidor. E o livro virou um reflexo disso tudo. De certa maneira há nele um personagem que tive de matar, entre aspas, para poder seguir adiante, talvez para eu mesmo não me matar. É quase como se esse livro fosse uma cerimónia de adeus de um monte de coisas que prezei muito até aos meus 37 anos”, afirma.
Queimar pontes
Descobri que estava Morto, de J. P. Cuenca, está escrito na primeira pessoa e baseia-se por vezes em factos, mas é uma construção, tal como o filme de que o próprio João Paulo Cuenca, além de argumentista e realizador, é também o actor principal. “Sim, é uma construção, claro, é literatura e quero que assim seja."
Na página 131 do romance, alguém diz à personagem Cuenca que tem uma vida incrível e parece que não vê. Isso leva a uma explicação do narrador: “O que eu via era uma história da minha precariedade, entremeada por longas e exóticas temporadas em terras estrangeiras que gostava de contar como se fossem vivências de um personagem alheio. Esse pendor ao teatro me fazia viver há bastante tempo além das minhas fronteiras físicas e emocionais, esgotando todos os recursos que por obra do destino ou esforço próprio conseguisse acumular (…). O circo portátil de hedonismo e bebedeira que carregava comigo drenava as minhas forças – a energia gasta com essa carência de estímulo só não era maior do que a usada para recolher os destroços. O casal Anselmo tinha razão: eu era uma máquina de queimar pontes que empobrecia sistematicamente.”
Agora, a olhar para o seu romance impresso em Portugal mas ainda sem edição brasileira, João Paulo diz que tem “um pouco de medo” das pontes que queimou ao escrever este romance. “Virei uma máquina de queimar pontes, tal como está escrito no livro. Esse narrador se coloca num lugar [que se presta a isso], mas não é um lugar de superioridade moral porque ele se ataca, se destrói, se corrói. É tão corrosivo com ele próprio como com tudo o resto: com a sociedade, com as festas, com o jornal e a televisão – para os quais colabora –, com a cidade, os afectos. Mas para dar conta desse livro não poderia colocar-me noutra posição: teria de me colocar na posição do morto, já que a grande virtude dos mortos é a sinceridade”, explica.
Por isso, o escritor considera que a epígrafe de Machado de Assis – ‘A franqueza é a primeira virtude de um defunto’ – que escolheu para abrir o romance faz todo o sentido. Parte dessa sinceridade como narrador é também uma admissão das próprias fraquezas. “Não de uma forma heróica mas de uma forma absolutamente ridícula porque a personagem desse livro – tal como a do filme – é um pobre coitado, um desgraçado que só faz coisas desgraçadas. É um horror. A relação que ele tem com a família, com as mulheres, com o dinheiro, com os festivais literários... é horrível. Era um pouco eu. Não sei se ainda é. Acho também que, se continuasse sendo essa pessoa, eu iria virar um pastiche ridículo de mim mesmo. Talvez tenha escrito esse romance para me servir de lição. Porque se continuasse dessa forma, de um jeito ou de outro, eu iria ter o final do personagem no livro”, acredita o autor.
Dois como se fossem um
A ideia de fazer um filme surgiu do processo de pesquisa para o livro. João Paulo Cuenca descobriu esta história em 2011 mas ficou “fugindo um pouco” dela. Só mais tarde, quando começou a ver os documentos que estão reproduzidos no livro e se vêem no filme – a guia de remoção de cadáver, o registo da ocorrência, etc –, é que rascunhou alguma coisa. Com um amigo cineasta, começou a conjecturar fazer um filme, mas só no segundo ano da escrita do livro é que as duas coisas se puseram a convergir. “Comecei a usar pedaços do livro para escrever pedaços do filme. E a usar a minha pesquisa para o livro – que foi contratar detectives – para alimentar as informações para o filme. No final de tudo, aluguei um apartamento no prédio onde morri [que entretanto tinha sido recuperado e estava à venda] com o dinheiro do filme. Fiquei dois meses lá. No final embolou tudo."
Não sabe dizer exactamente que ideia teve primeiro e para onde, se para o livro, se para o filme. "As duas coisas são complementares dentro da minha cabeça, um não é a adaptação do outro. Partem do mesmo facto e abrem para significados e lugares diferentes. Para quem lê o livro e vê o filme, é como se cada um se desse nas margens e nos intervalos do outro", diz.
Durante o processo criativo, João Paulo Cuenca também não parou de fazer uma coisa para fazer a outra. Fez tudo ao mesmo tempo. “Escrevi grande parte do livro naquele apartamento vazio, sozinho. Achava importante estar no lugar onde o cara morreu. Se ele tivesse morrido em outro endereço não seria tão potente, mas morreu num prédio ocupado, no coração da crise do Rio de Janeiro, onde a cidade está mudando mais rápido, dentro de um bairro super-simbólico para a nossa identidade, que é a Lapa. No fundo é uma identidade roubada dentro de um prédio com identidade renovada, dentro de um bairro com a identidade em transformação e que ao mesmo tempo é fundamental para a identidade da cultura brasileira.”
Hoje, Cuenca sabe que não é saudável aproximar-se tanto do lugar da morte. Uma cena em que o escritor falava com psicanalistas e todos lhe diziam para não ficar no prédio acabou por não entrar no filme – será um extra do DVD. Todos lhe diziam que "era uma pulsão de morte" e que "não é legal você morar onde foi declarado morto". "Acabei fazendo isso para fazer o filme e o livro ou acabei fazendo o filme para fazer isso, não sei muito bem." Na verdade, não sabe se já se libertou dessa história. Quis que ficasse irresoluta, no sentido de que há pontas soltas a resolver, E o próprio caso policial está em aberto. "É como se o livro e o filme fossem peças de um quebra-cabeças que coloco no mundo para ver o que dá. Não sei se isso acaba enquanto eu estiver vivo ou mesmo depois, você entende?"