A América, segundo Stiglitz
A austeridade provoca desemprego e com este a força de trabalho não pode ser treinada, conclui com justeza Stiglitz.
A conferência de Joseph Stiglitz na Gulbenkian, no dia 1 de Dezembro, levou mais gente ao Grande Auditório da Fundação do que um concerto do saudoso Astor Piazzolla ou a execução dos Concertos Brandburgueses de Johann Sebastian Bach. Desta vez, o presidente da FCG fez apenas uma breve apresentação do autor, como acontece nos países civilizados, ao contrário do que é costume naquela casa. O tema desenvolvido pelo Prémio Nobel de 2001 foi o da economia globalizada versus desigualdades. Entre a selecta assistência encontrava-se certamente muita gente que não percebeu o que o orador disse, (apesar do powerpoint), durante as duas horas que durou a conferência, incluindo o período de diálogo com três ou quatro membros da assistência, todos estrangeiros. Porque, a não ser assim, não continuaríamos a ver um tão grande número de ignorantes que permanentemente defendem o contrário, nas tribunas que lhes são oferecidas pela chamada comunicação social portuguesa, digna de um país do Terceiro Mundo, como eram assim chamados, depreciativamente, aqueles que não pertenciam nem ao bloco socialista nem ao chamado “mundo livre”, que de livre só tem o nome.
Estudioso de longa data da globalização, mas reflectindo agora sobre a realidade dos Estados Unidos, Stiglitz demonstrou com números adequados a enorme transferência que sucedeu, a partir dos anos 1980, de rendimentos do trabalho para o capital. Que provocou naquele país, como em muitos outros, ainda mais a partir do fim da guerra-fria, um aumento exponencial das desigualdades nas sociedades ocidentais. Criando a famosa dicotomia: 99% a pagarem para 1% enriquecerem. E mostrou a importância que este fenómeno das desigualdades tem na baixa performance económica de muitos países. Donde, conclusão minha, os resultados que se esperava com as políticas de rigor orçamental, preconizadas na Europa desde o Tratado de Maastricht, a cuja proclamação assisti directamente em Bruxelas na década de 1990, que se dizia irem levar a Europa a uma era de grande prosperidade, terem o efeito inverso, originando estagnação económica na maior parte dos países, para não falar na trágica situação em que se encontram outros como Portugal.
A austeridade provoca desemprego e com este a força de trabalho não pode ser treinada, conclui com justeza Stiglitz, donde a espiral de desgraça e retrocesso económico e social nos países que a adoptam. Fazendo uma resenha histórica, ao defender que a coesão social e igualitária teria nascido nas condições excepcionais da II Guerra Mundial, e duraria até à viragem provocada por Reagan e os neoliberais, não referiu o New Deal de F. D. Roosevelt, que verdadeiramente tornou os Estados Unidos numa social-democracia, um tempo em que mesmo as grandes famílias como a de Rockfeller não tinham o Estado ao seu serviço, como agora acontece no Congresso dominado pelos republicanos. (Veja-se as notícias que têm saído ultimamente sobre a fuga aos impostos das grandes multinacionais americanas, avaliada em 2,1 triliões de dólares, a propósito da compra da Allergan pela Pfizer).
Para quem conhece há algum tempo a história dos Estados Unidos, onde actualmente a polícia dispara sobre os negros como se fossem bonecos de feira, só poderá reforçar as suas convicções sobre o “paraíso” que se vive nesse país. Mas para os jovens desconhecedores das “conquistas” americanas à custa de outros países, (leiam a République Impériale de Raymond Aron), da Guerra do Vietname e da utilização de armas químicas e bacteriológicas, de cujas consequências as populações ainda hoje sofrem, das ditaduras genocidas impostas aos latino-americanos durante os anos 1960 e 70, só porque queriam decidir livremente sobre os seus destinos políticos. E, mais atrás, das próprias lutas dos afro-americanos pelos seus direitos cívicos e da campanha contra os linchamentos livres e impunes dos negros nos Estados do sul, que levou à interdição pelo FBI do passaporte do grande cantor negro Paul Robeson durante quase uma década, impedido de sair do país por participar nessa campanha e ser simpatizante da União Soviética e do socialismo, como eram centenas de outros artistas, escritores e cientistas, desde Charlie Chaplin e Picasso a H. G. Wells e Einstein, como é exemplo um texto deste ultimo publicado em 1949 na Monthly Review defendendo o socialismo. Para os jovens, que só conhecem os acontecimentos recentes relacionados com a invasão do Iraque e do Afeganistão, esta lição foi proveitosa.
Joseph Stiglitz só não tocou no omnipresente e omnipotente complexo militar-industrial americano, Big Brother actual, com o seu controle total urbi et orbe das telecomunicações, além do militar, com centenas de bases espalhadas por todo o mundo, destinadas a consolidar o império americano, que mesmo assim não consegue impedir ataques terroristas, como o acontecido na Califórnia recentemente.
A sala estava muito composta, com várias presenças significativas, como a do patrão da Jerónimo Martins, instituição a que vi há dias um seu colaborador reformado atribuir o título de think tank. Assim como a do embaixador americano, a quem, ao que parece, Paulo Portas, ou alguém por ele, foi fazer queixa da solução encontrada em Portugal para correr com o anterior governo, e a quem o autor da conferência não pediu licença para afirmar que apesar da desgraça que se vive nos Estados Unidos ainda há países que pretendem seguir o modelo americano. E que este só não é mudado por razões políticas.
Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia