Histórias e fantasmas

Laurie Anderson propõe mais um conjunto de histórias que transfiguram o real, sob a forma de um filme-ensaio sobre os fantasmas que a acompanham

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Coração de Cão é um colar de histórias entrelaçadas, um filme-ensaio que é requiem pelos mortos da vida de Laurie Anderson

Sejam, então, bem vindos ao universo de Laurie Anderson: aquela onde o seu “corpo de sonho” dá à luz Lolabelle, a sua cadela rat terrier que, na realidade, lhe foi cosida no interior para ela a poder dar à luz. Poucas metáforas serão tão apropriadas ao que a performer, cantora e contador de histórias americana faz do que esse “falso nascimento”: pegar num facto, numa memória, numa experiência, absorvê-la e regurgitá-la sob uma forma transmutada, simultaneamente trivial e fantástica, quotidiana e extraordinária, criando no processo um “colar de histórias” que parecem nada ter em comum mas partilham um mesmo cordão umbilical. Coração de Cão é mais um desses colares de histórias entrelaçadas, um filme-ensaio que é um ao mesmo tempo requiem pelos mortos da sua vida (a sua mãe, a fiel cadela Lolabelle, o artista Gordon Matta-Clark e, sempre pairando mas só no genérico final efectivamente presente, o marido Lou Reed).

Coração de Cão é um filme de fantasmas – a própria Anderson o admite a certa altura – mas responde a essa assombração com a simples celebração do momento, do estar vivo (“os dias servem para nos acordar”, como se ouve às tantas), como quem diz que nada se perde, tudo se transforma. Fá-lo através de uma “colagem” (muito Godardiana) de elementos que vão de animações caseiras a home movies, imagens super 8 e reconstituições narrativas, unidos pelo modo singular, esquinado e contudo tão reconfortante, com o qual Anderson vai contando as suas histórias. Reside, aliás, precisamente aí a força e a fraqueza de Coração de Cão: apesar da evidente inteligência com que tudo é feito e montado, e da precisão com que as imagens “dão a ver” o que se esconde por entre as histórias, nunca conseguimos afastar a sensação que o filme é uma mera “versão ilustrada com imagens em movimento” de uma das suas performances, e poderia perfeitamente sobreviver em palco sem essas imagens. Ou, posto de outra maneira, o que Laurie Anderson explora aqui já Godard anda a fazer há uns anos. Não é razão para descartarmos Coração de Cão (a aluna é muito aplicada e aprendeu bem a lição), mas é coisa que tempera o nosso entusiasmo. 

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