"Não sou um entertainer: penso em arte, e não se as pessoas vão gostar"
A Casa da Música encerrou o Ano Alemanha com um concerto em que Helmut Lachenmann, o compositor em residência, partilhou a Sala Suggia com Pedro Burmester e Beethoven. "Não tenho que pensar na beleza! O que procuro é intensidade, autenticidade, espírito".
Quando outros se voltavam para as máquinas na procura de uma nova música, o compositor alemão Helmut Lachenmann (n. Estugarda, 1935) estendeu as possibilidades dos instrumentos tradicionais, inscrevendo a sua própria marca na tradição, que respeita e defende. No ano em que celebrou o seu octogésimo aniversário, Lachenmann visitou quatro vezes a Casa da Música (CdM), participando activamente do portrait que esta lhe dedicou – no âmbito do Ano Alemanha. Talvez não volte ao Porto para rever a instituição que tanto elogiou, pois prefere sentar-se em casa a trabalhar, em vez de despender em viagens o “pouco tempo” que possa restar-lhe; mas dispensou simpaticamente alguns minutos ao PÚBLICO, antes do último concerto da sua residência artística, realizado a 12 de Dezembro na Sala Suggia.
Ao longo da sua residência artística, com que ideia ficou da Casa da Música?
É um projecto de que Portugal tem que se orgulhar. Se faltar dinheiro, cortem no entretenimento e canalizem-no para aqui.
E dos músicos?
Têm uma boa atitude. Não estão muito habituados a usar plenamente as suas capacidades de escuta, voltando as suas antenas para os fenómenos acústicos. É preciso trabalhá-los, mas são muito bons.
Esperava encontrar um público tão numeroso como o que o tem recebido no Porto?
O público não é para mim um problema, mas esta é a minha quarta visita e a sala tem estado sempre cheia.
E a forma como reagiu à sua música?
Há pessoas que parecem um bocadinho irritadas, outras entusiastas. Não tenho que pensar muito nisso: eu próprio sou público e também ouço. Os concertos dependem de muitos factores que não controlo, como o facto de haver ciclos com assinatura e de as pessoas virem assistir porque já pagaram, ou porque vêm para ouvir o pianista Pedro Burmester. A mim cabe-me pensar na minha música com tanta precisão quanto possível. E o público, claro, é sempre bem-vindo.
Quando escreve, sabe que, em última instância, haverá um público a escutar. Compõe apenas pela arte ou fá-lo também para comunicar?
Não há diferença entre uma coisa e outra. Escrevo uma peça porque estou obcecado por uma ideia auditiva e penso sobre a música. Conheço a tradição de que descendo, a música ocidental desde Monteverdi, que sofreu sucessivas mudanças e um enorme desenvolvimento, abrindo novas categorias. Aliás, a música sempre foi aberta, mas, depois da 2ª. Guerra Mundial, abriu-se talvez duma forma para a qual o público não estava preparado. O público, que era mais “filarmónico”, deparou-se com música um pouco mais estruturalista – no meu caso, com sons que não lhe são familiares. Não sou um “entertainer”: penso em arte, e não se as pessoas vão gostar. Os “entertainers” têm que o fazer porque, se não divertirem, são dispensados. Enquanto compositor, não me cabe especular sobre o gosto do público, nem servi-lo ou diverti-lo. Tenho que seguir as minhas ideias e dar o meu melhor no meu trabalho. Já houve pessoas irritadas, zangadas; algumas até me disseram que o que faço não é música. Talvez nem seja, mas então o que é? É um tempo em que somos convidados a ouvir, a abrir os nossos ouvidos e sentir a lógica ou o contexto em que isto é feito. Algumas pessoas gostam. Algumas conhecem a música de novos compositores, outras vivem no período barroco...
Há muita gente a apreciar a sua música.
Mas também há pessoas mais ou menos nervosas. É uma longa tradição. Quando Bach fez os seus primeiros corais para a igreja, queriam despedi-lo, porque ele perturbava a adoração – queriam rezar a Deus, cantar, não ouvir! Mas se as pessoas descobrirem a possibilidade de abrir as suas mentes, talvez abram o seu coração. Um dos aspectos com que estou cansado de ser confrontado é o da minha música não ser bonita. Não tenho que pensar na beleza! O que procuro é intensidade, autenticidade, espírito. E, no final, posso falar de beleza.
Quão inspiradora é a tradição, de que tem consciência?
Cada compositor tem o seu próprio mundo. Vejo cada um dos grandes compositores tão radical como consequente, no seu próprio modo de pensar, mas não posso aprender técnicas com eles. Há música em que o compositor trabalha mais com a matéria, como Beethoven, por exemplo, que mudou a melodia, trabalhando na sua própria estrutura, olhando para a anatomia da paisagem sonora. Não tenho que fazer a paisagem sonora de Beethoven, tenho que fazer a minha própria paisagem sonora. Estudei partituras de Haydn, Beethoven, Debussy, vi como eles tratavam os instrumentos, a orquestra. Isso enriqueceu a minha própria técnica, mas cada compositor é completamente solitário. Não posso aprender nada de Mozart e, ao mesmo tempo, posso aprender tudo dele! Tenho é que ser puro à minha maneira, não à dele, se não seria sempre um epígono.
Fala de compositores que já morreram há muito, mas o que reteve, por exemplo, dos ensinamentos de Luigi Nono?
Nono ajudou-me a pensar de modo mais preciso aquilo que faço. A sua técnica era imensamente pura e radical, e eu percebi, desde o primeiro momento em que estive com ele, que devia compreender a sua posição radical sem a imitar. Agora que sou professor, uma das minhas preocupações é evitar que os alunos me imitem. Não há escola de Lachenmann: detesto esse conceito! Voltando a Nono, um tímpano na sua música ainda é como no tempo de Beethoven, mas já não no sentido harmónico, há um sentido estrutural, uma situação acústica. Normalmente não ouvimos situações acústicas. Se ouvir Eine Kleine Nachtmusik, de Mozart, ouvirá a melodia. Não ouve realmente. Agora está a ser muito simpática em ouvir o que estou a dizer, mas não está a ouvir a minha voz.
Estou a ouvir o sentido.
O sentido, sim, mas não a acústica... Se eu falar mais agudo, sente a necessidade de rir. No momento em que sintoniza as suas antenas, já é uma experiência acústica... Por isso, é trabalho dos compositores encontrar uma técnica para descobrir novas antenas nos ouvintes, que normalmente estão focadas na tonalidade, harmonia e melodia. Os compositores têm que evitar completamente essas categorias para criar outro tipo de escuta, para começar a ouvir timbres e outros elementos que já escutámos, mas aos quais não prestámos muita atenção. Se for à praia, fecho os olhos e começo a ouvir sons a que habitualmente não presto atenção: ouço aves, água, vento (e não me interessa se é bonito!). O silêncio é de uma enorme importância, pois é perante ele que começamos a “abrir os ouvidos” e, abrindo-os, constatamos precisamente que somos capazes de os abrir. É uma experiência muito profunda. Abrirmos os nossos ouvidos, em música, significa que somos capazes de alargar o nosso horizonte estético.
Caso tivesse nascido num país em que não tivesse tantas orquestras e concertos a que pudesse assistir, o seu pensamento e obra seriam ainda os mesmos?
Teriam tido um desenvolvimento diferente, claro. De qualquer modo, desde que eu fosse igualmente obcecado, hoje facilmente nos informamos.
Hoje, sim.
Se houvesse menos orquestras, talvez tivesse escrito menos música para orquestra. Claro que sou influenciado pela minha educação, pela cultura do meu pais... Talvez nem tivesse vindo a ser compositor! Mas isto é especulação. Eu conheci Jorge Peixinho e Emmanuel Nunes, ambos vieram para a Alemanha, tiveram a sua formação e fizeram música totalmente “autêntica”. Tenho um grande respeito por ambos. Fui para Itália para fazer a minha formação! Poderia ter ficado na Alemanha, mas estava fascinado pela música de Luigi Nono. E alguns asiáticos chegam mesmo a esquecer a sua própria cultura, de tão fascinados que ficam pela música europeia.
Em que é que está a trabalhar no presente?
De momento, estou em pausa.
Mas tem alguns projectos em mente?
Imensos! Mas preciso de encontrar tempo. Como celebrei o meu octogésimo aniversário há poucas semanas, tive imensos concertos. Este ano, estive quatro vezes no Porto. Gosto imenso de assistir aos ensaios e de trabalhar com os músicos, com quem aprendo imenso pela forma como se comportam com esta ou aquela técnica. É uma situação maravilhosa, mas não é criativa, uma vez que não posso sentar-me em casa e escrever música! Portanto, tenho que me organizar e espero mudar novamente a minha forma de viver, no próximo ano: sentar-me e escrever música. Tenho encomendas e os meus próprios projectos, que quero realizar. O que quero fazer é andar para a frente. Um compositor não é um autómato que conhece a sua técnica e a emprega criando diferentes formas.
Quando julga que a sua música será escutada em concertos da mesma forma que o é hoje a de Beethoven?
Nunca. E creio que não quero que isso aconteça. Devia ouvir-se Beethoven de forma muito mais atenta. Não posso controlar como é que as pessoas o ouvem, mas ele já é conhecido, o público já está familiarizado com esse tipo de linguagem. Não posso é esperar que o meu modo de fazer música seja conhecido de toda a gente. E, na verdade, nunca foi! Aquilo a que chamamos arte foi sempre de uma minoria, nunca da maioria.
Assim dizia Schönberg.
Quem é que ouvia a música de Bach? A aristocracia. E quem ouvia a música de Beethoven? O conde, a condessa... No séc XIX, havia a ópera que chegava a muito mais gente, mas nunca à maioria. Nunca encheria um estádio. Bob Dylan poderia fazê-lo (e tenho um grande respeito), mas isso é outro mundo, é entretenimento. Precisamos disso, talvez, para esquecer um pouco os nossos problemas, mas em democracia deve respeitar-se também as minorias, porque são elas que avançam. As técnicas e invenções da civilização ocidental não foram feitas pela maioria, mas por pessoas individuais. Os compositores têm que fazer o que têm a fazer.
Qual é o aspecto mais importante que um aspirante a compositor tem que ter presente?
Dois aspectos: a consciência de que nunca ganhará muito dinheiro e a da importância da tradição. Se se quiser fazer muito dinheiro, é melhor ser-se “entertainer”, pois muitos compositores têm que ensinar, em vez de compor. E os compositores devem estudar a tradição, conhecer a música que foi feita e a sua evolução, de que fazem parte. Devem treinar os seus ouvidos, para ouvir. E não seria mau aprender a pensar, pois ajuda a avançar e também pode ser inspirador.
Como se posiciona nessa evolução da música?
Bom, eu venho da tradição de Luigi Nono, que foi o meu professor. Não foi Pierre Boulez, nem John Cage. Tenho um grande respeito por todos eles. Na minha geração, há compositores que estão próximos dessa forma de pensar, outros que estão mais próximos de um pensamento electrónico. Para mim, decidi não julgar. Penso que os jovens compositores não têm uma vida muito fácil. Na minha geração havia algo para descobrir, outros sons...
Mas actualmente continua a haver compositores preocupados com o som.
A questão não está em descobrir sons, mas em usá-los em novos contextos. Uma harpa poderia ser um óptimo elemento numa peça de Haendel, teria um significado completamente diferente numa peça de Ravel. Cada compositor tem que dar à harpa um contexto em que ela seja a “sua” harpa. O contexto tem que ser novo. Se descobrir a minha própria maneira de trabalhar com isso, mesmo um som muito conhecido soará ligeiramente diferente.
Tenciona visitar novamente o Porto, em breve?
Bom, já estou um bocadinho velho e tenho que organizar o meu tempo, que já não é assim tão longo. Desde que tenha energia para escrever música, devo encontrar as prioridades certas. De qualquer modo, nunca fui grande turista. Já viajei! Mas quando estou em casa com a minha música... é tão interessante! Vocês têm um poeta que diz que há pessoas que têm que viajar muito, mas que ele, sentado na sua janela, encontra imenso que descobrir.