Muita pose, pouca poesia
Enquanto poesia da perda e da evocação de um tempo passado, este livro de Pedro Mexia fica demasiado preso a uma estetização — e dispersa-se em ninharias
Este livro é composto por poemas que ocupam o terreno mais próprio de uma tradição originária da poesia: a do “canto” do que falta e do que se perdeu. E isso é explicitado num título de alcance programático: Uma Vez Que Tudo se Perdeu. Na perda, no desaparecimento e na despossessão reside o princípio consubstancial a toda a poesia. Se reduzirmos a sua história a uma poética restrita, ela segue desde o início em duas direcções: uma é a da celebração gloriosa, de onde nasce o hino, o canto de louvor; a outra é o canto do que declinou ou desapareceu, e neste caso temos a elegia, a poesia do lamento. O elegíaco fixa-se numa eterna repetição da origem e é a expressão lírica do trabalho de luto ou do trabalho da memória que, numa das suas modalidades (quando se dá um processo de interiorização do seu objecto), dá lugar à melancolia.
Estas são as questões genéricas onde se enquadram os poemas de Pedro Mexia. Temos agora de ver como é que elas são modalizadas. A elegia tem os seus topoi, as suas fórmulas-chave. Um desses tópicos é o ubi sunt, a interrogação dilacerada sobre o que foi e já não é, sobre o que já não se pode encontrar porque despareceu ou já não está no mesmo sítio. O exemplo típico do tópico do ubi sunt é o verso de Villon: “Où sont les neiges d’antan?”. Encontramo-lo, fatalmente, em vários poemas deste livro, e da maneira mais evidente neste que se chama A Casa dos Trinta: “Era um telhado, onde está?/ Janelas com adesivos, escadas/ a que faltam degraus, portas/ abrem para um desvão./ Havia uma varanda, alguém a desfez.” Podemos, aliás, recensear um inteiro catálogo dos tópicos convencionais do tom elegíaco, desde a encenação dos sentimentos até à temporalidade particular do tempo suspenso entre o passado e o futuro (um poema intitulado Futuro Anterior é, aliás, a formulação auto-reflexiva de um paradoxo temporal, é o tempo gramatical de uma afectação elegíaca). Ao ponto de encontrarmos boas razões para achar que esta poesia mima com demasiada complacência certas “virtudes” poéticas que têm menos a ver com a poesia do que com efeitos de poetização, para não lhe chamarmos ninharias poéticas, como diríamos adequadamente para nos referirmos, por exemplo, ao poema Aqui, que é a evocação de um passado trazido para o presente através de fotografias (“Aqui estamos na laguna/ em uníssono/ escondidos e escuros./ Aqui na esplanada/ e os pombos invejam/ o modo como respiras (...)// Aqui é Lisboa,/ estou sentado no chão/ com fotos nossas,/ e todos me garantem/ que não tirámos nenhuma.”); ou para nos referirmos a este Inimaginável (assim se chama o poema), que começa assim: “A casa sem os avós/ quem a pôde alguma vez/ imaginar?, a casa sem/ os tios, vejam como é;/ a casa um dia sem os pais,/ inominável, a casa sem nós,/ um dia imortais (...)”.
Como todas as mímicas, estes efeitos — de um lirismo moderado — instituem um poeta poseur, esteta. E o elegíaco acaba por se confundir com celebração: autocelebração da poesia, autocelebração do poeta. O círculo fecha-se nas várias complacências e na futilidade de um habitar poeticamente o tempo e o mundo, numa versão banal do consabido motivo hölderliniano. Aquilo a que chamo poetização não é apenas um acto de fé no catálogo de topoi e motivos elegíacos; é também uma confiança na linguagem e na sua transparência, confiança num verbalismo da evocação, como se houvesse uma fusão entre o viver e o dizer. Os poemas transbordam de literatura, excedem-se nas coisas da poesia que fazem enlouquecer as crianças: repetem de maneira implacável o tempo que passou, aquilo que se perdeu, a distância a que ficaram a juventude, o amor e a felicidade. Tudo declinado segundo as regras e com a afectação que se espera: a afectação da pose poética. Ou, então, num registo diferente (mas sem nunca deixar de “habitar” a literatura), a afectação descritiva, à maneira de crónica. Leiam-se estes versos de Katherine Whitmore Dá uma Aula Sobre Pedro Salinas: “A trilogia que inclui La voz a ti debida,/ Razón de amor e Largo lamento/ supõe uma instabilidade entre o tu vivido/ e um tu intelectual. Katherine explica às alunas núbeis/ e entediadas do Smith College/ que o poeta espanhol começa/ por se referir à amada como uma suprpresa/ e um cataclismo, uma força nova”. A cultura histórica e literária da qual Pedro Mexia faz as suas crónicas é transferida, exactamente no mesmo registo, para este poema.
Mas seria injusto omitir que há lugares neste livro que estão a salvo das ninharias poéticas. É o caso de um poema que se chama A Curva do Mónaco. E há também meia dúzia de poemas que, embora integrados no conjunto sem separação (o autor indicado entre parêntesis rectos por baixo do título), são traduções: de Wallace Stevens, de Robert Lowell, de Dylan Thomas, etc. Este modo de integrar as traduções é um outro sinal de que nada deste livro é exterior a um saber respeitoso da cultura da poesia, à sua história e aos seus códigos. Daí a sua permeabilidade às complacências, às habilidades e às futilidades da cultura literária. Mas atenção: não é por partir dessa matéria que se chega necessariamente ao resultado que está à vista. O primeiro poema do livro chama-se Chandos Disse e é, obviamente, uma referência ao Lord Chandos, de Hofmannsthal, que envia uma carta a Francis Bacon contando-lhe o “estado de letargia espiritual” em que parece “ter caído”. E conta-lhe que essa “doença do espírito” o deixou incapaz de escrever, as palavras parecem-lhe afectadas por uma impossibilidade de dizer o mundo, de representar a totalidade que a racionalidade clássica tinha facultado aos escritores. Trata-se de uma crítica da linguagem, que a cultura austríaca do fim do Império vai desenvolver em larga escala. Ora, Pedro Mexia bem pode começar por se referir ao Lord Chandos, mas a lição que vai prosseguir é outra: a da transparência do sentimento, a mimesis que supõe que o poema é um bom condutor das afeccões, sem opor qualquer resistência. Chandos levou tão longe a suspeita sobre a linguagem que se remeteu ao silêncio. Pedro Mexia coloca-o a abrir o seu livro como um cristão pecador e eloquente que evoca o nome de Deus em vão.