Assistência Mútua sob o Artigo 42.7 do Tratado de Lisboa: aparência e substância
O argumento de que a França está em guerra contra o Estado Islâmico afigurou-se oportuno, na medida em que concedeu aos líderes franceses o supremo pretexto para a partilha do ‘fardo’ que terão de carregar nos próximos tempos.
No rescaldo dos momentosos acontecimentos ocorridos em Paris no passado dia 13 de Novembro, o Presidente francês, François Hollande, invocou o artigo 42.7 do Tratado de Lisboa, segundo o qual: “Se um Estado vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51 da Carta das Nações Unidas. Tal não afecta o carácter específico da política de segurança e defesa de determinados Estados-membros. Os compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que, para os Estados que são membros desta organização, continua a ser o fundamento da sua defesa colectiva e instância apropriada para a concretizar.”
Aparentemente, só a primeira parte dessa disposição assume significado especial ao codificar a condição passível de justificar um pedido de assistência mútua por parte de um Estado-membro da União Europeia (UE): um ataque armado em território nacional. Todavia, uma exegese rigorosa desse preceito deve ressaltar que este comporta 3 cláusulas importantes, com memórias históricas distintas, que importa revisitar para uma discussão séria sobre o cerne da assistência mútua sob o artigo 42.7. A primeira cláusula já referida, que prevê a assistência mútua em caso de agressão armada, replica, em parte, o artigo V do Tratado de Bruxelas Modificado de 1954, pacto fundador da União da Europa Ocidental, que foi formalmente extinta em 2011, depois de mais de uma década de inércia organizacional. Por seu turno, a segunda e terceira cláusulas estabelecem duas excepções relativamente à provisão de assistência mútua. A sua formulação ficou originalmente vertida no artigo J.4 do Título V do Tratado de Maastricht, que formalizou a criação da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), e foi escrupulosamente retida nos subsequentes tratados europeus (i.e. Tratado de Amesterdão e Tratado de Nice).
Em concreto, a segunda cláusula permite a certos Estados, tais como a Áustria, Finlândia Irlanda e Suécia, eximirem-se da obrigação de prestar assistência militar à luz da sua política de neutralidade militar que encontra expressão máxima na sua opção pela não-adesão à NATO. Por seu turno, a terceira cláusula concede a um Estado-membro da NATO, vítima de agressão armada, o direito de preferência pelo mecanismo de defesa colectiva plasmado no artigo 5º do Tratado de Washington, sendo certo que por via desse dispositivo o país aliado espera receber apoio militar efectivo dos EUA.
Ao passo que em 1992 as duas limitações em discussão foram cruciais para a aceitação da PESC por parte dos Estados-membros da NATO, com especial destaque para o Reino Unido, no quadro do Tratado de Lisboa essas limitações foram imprescindíveis para mitigar e balizar o alcance da cláusula de assistência mútua, cuja inclusão, primeiro no articulado do Tratado Constitucional (I-41.7) e, depois do colapso deste, no Tratado de Lisboa, resultou em, larga medida, da pressão franco-alemã (secundada pela Bélgica e Luxemburgo) nesse sentido, após a intervenção anglo-americana no Iraque em Março de 2003. Essa incursão militar tornou-se fonte de particular apreensão estratégica para a França que, na altura, se encontrava fora da estrutura militar da Aliança Atlântica e já havia dado o seu beneplácito ao fim operacional da UEO. A forte preocupação francesa esteve na origem da proposta de criação de uma União Europeia de Segurança e Defesa (UESD), contemplando o estabelecimento de um quartel-general permanente exclusivamente europeu, bem como de mecanismos mais vinculativos de assistência mútua, segurança comum e solidariedade, apresentada no contexto de uma simbólica reunião que teve lugar em Tervuren (perto de Bruxelas), em finais de Abril de 2003.
Depois de o 11 de Setembro de 2001 ter lembrado a todos os Estados europeus que as “Missões de Petersberg” não previam um dispositivo de assistência mútua, a proposta de criação de uma UESD, que animou a última fase dos trabalhos da Convenção Europeia, favoreceu um compromisso negocial que acabaria por redundar no enunciado tríptico do artigo 42.7 que configura um mecanismo de solidariedade mútua que pode (ou não) assumir um recorte militar. Não se estipula aqui uma garantia de segurança militar no caso de agressão armada contra um Estado-membro, porquanto o tipo de meios e capacidades a disponibilizar são deixados à discrição das autoridades nacionais que são soberanas para decidir caso-a-caso. Por conseguinte, o dispositivo de assistência mútua aqui previsto não produz obrigações de forma automática, não acarreta forçosamente a prestação de apoio militar e não vincula todos os países de igual modo. [1] Em suma, o artigo 42.7, pela sua matriz flexível, natureza condicional e alcance assimétrico não deve ser equacionado com uma genuína cláusula de assistência militar.
Ao invocar o artigo 42.7 o Presidente François Hollande, para além de ter criado um precedente histórico, expôs o único cenário em que a cláusula de assistência mútua parece revestir-se de utilidade real: no ‘worst-case-scenario’, por outras palavras, no caso-limite em que um Estado-membro da OTAN entende que foi vítima de agressão armada, mas por motivos de força maior essa situação não gera, no seio da Aliança, uma ponderação política unanimemente favorável à invocação do artigo 5º do Tratado de Washington. Acresce que a decisão do Presidente francês suscitou dúvidas sobre o valor essencial da Cláusula de Solidariedade estipulada no artigo 222.º do Tratado de Lisboa, de acordo com o qual, “se um Estado-Membro for alvo de um ataque terrorista….A União mobiliza todos os instrumentos ao seu dispor, incluindo os meios militares disponibilizados pelos Estados-membros…”.
Por último, é plausível afirmar que a preferência de François Hollande pelo artigo 42.7, em detrimento do artigo 222.º, foi fruto de um engenhoso cálculo político que, para além de aspectos relacionados com a auto-percepção da França como grande potência europeia e actor internacional de primeira linha, foi condicionado por uma conjuntura interna marcada por severas dificuldades económicas e financeiras, um profundo sentimento de insegurança social e pela crescente popularidade da Frente Nacional. O argumento de que a França está em guerra contra o Estado Islâmico afigurou-se oportuno, na medida em que concedeu aos líderes franceses o supremo pretexto para a partilha - quer com os contribuintes nacionais, quer com os parceiros europeus -, do ‘fardo’ que terão de carregar nos próximos tempos.
[1] Um maior desenvolvimento desta leitura pode ser encontrado no artigo Laura Ferreira-Pereira e AJR Groom, ‘‘Mutual Solidarity’ within the European Union’s Common Foreign and Security Policy: What is the Name of the Game?’, International Politics, Vol. 47, Nº. 6, Dezembro 2010, pp. 596-616.
Professora de Relações Internacionais da Universidade do Minho