O génio da indolência
Pela primeira vez, o clássico de Gontcharov surge-nos em tradução directa. Oblomov é um romance singular na brilhante galeria dos maiores escritores russos do século XIX
Por que razão não conquistou o livro de Ivan Gontcharov um lugar tão cimeiro como os romances de Dostoiévski e Tolstói, ou como os contos de Tchékhov? Por um conjunto de factores adversos, Oblomov foi, não poucas vezes, visto como uma empreitada insólita, uma curiosidade do capricho artístico do seu autor — quando não alvo do mais resoluto desprezo. Mesmo por quem conhecia por dentro a literatura russa, como era o caso de Nabokov, que, com hirsutez habitual, se refere de forma especialmente depreciativa ao romancista — “Gontcharov, Grigorovich, Korolenko, Stanyukovich, Mamin-Sibiryak e outros chatos (comparáveis aos ‘escritores regionais’ americanos) que só conseguiam embrutecer quem os lesse” (Fala Memória, Relógio D’Água, 2013).
É possível — é, aliás, bastante provável — que os contemporâneos de Gontcharov tenham começado por guardar ressentimento ao romance e ao seu autor pela criação do protagonista Oblomov, que parecia encarnar alegados caracteres nefastos da alma russa, como a indolência, à cabeça, a indecisão e a falta de espírito prático. Oblomov é, efectivamente, o admirável arquétipo do hesitante preguiçoso, e tornou-se proverbial na representação icónica desses traços de personalidade. Acrescente-se o claro e significativo contraste que o romance estabelece entre o protagonista e o seu amigo Stolz, “apenas meio alemão, por parte do pai: a mãe era russa” (p. 199). A linhagem, ainda que cortada a meio, era suficiente para fazer ferver os ímpetos nacionalistas, e para que se tomasse a peito a suposta ofensa ao brio russo. Stolz é positivo e pragmático, decidido e interventivo. E muito mais “ocidental” do que o “oriental” Oblomov — assentando-se, nesta dicotomia, que o Oriente representava uma certa passividade contemplativa e sonhadora das coisas e dos seres. Acabará por demonstrar a sua capacidade de acção casando com a figura que concentra as aspirações idealistas de Oblomov: Olga. Ou seja, o russo procrastinador, Oblomov, é preterido pelo decidido “alemão”, Stolz. Além disso, Gontcharov era um representante do poder (foi funcionário do Ministério das Finanças e, mais tarde, serviu mesmo nos Serviços de Censura) e conseguia desse modo a dúbia proeza de antagonizar os sectores mais conservadores mas também a ala mais progressista da intelligentsia. Quando Dostoiévski quis fundar a sua revista Vremya (Tempo), com o apoio do irmão Mikhail, o censor encarregado da autorização foi, precisamente, Gontcharov. Sobre ele, teria o autor de Os Demónios palavras sulfurosas. Na mesma linha de Turgenev, diagnosticou-lhe uma alma de burocrata e descreveu-o como um ser dotado da “alma de um funcionariozeco e com os olhos de um peixe cozido, a quem Deus, como por piada, concedeu um talento brilhante”.
E no entanto, o grande crítico Belinsky louvou — ainda que com reservas — o primeiro romance de Gontcharov (traduzido, entre nós, na década de 70, por Manuel de Seabra, com o título A História de Sempre), tendo destacado como principal força do seu talento “a elegância e a delicadeza da sua pincelada, a fidelidade da sua capacidade de desenho”. E embora reprovasse o epílogo, considerou-o o “uma das mais notáveis obras da literatura russa”. Do lado dos romancistas, escrevia Tolstói, em carta datada do mesmo ano em que saía Oblomov(1859): “A propósito de literatura, Oblomov é algo absolutamente fundamental, como há muito, muito tempo não se via. Diga a Gontcharov que estou maravilhado com Oblomov e que o estou a ler de novo.” Dostoiévski, contudo, manteve-se irredutível na sua posição: considerava o romance “abominável”. Mas talvez o ressentimento também tivesse desempenhado o seu papel naquela apreciação, já que os honorários atribuídos pelo editor a Gontcharov irritaram o seu áspero génio: “Se Gontcharov soluçasse, todos os jornais começariam imediatamente a gritar: ‘O nosso venerável romancista soluçou’ — enquanto me ignoravam”, diria mesmo.
O romance teve a sua génese — ou primeiro esboço, ainda distante — no conto Uma Cruel Aflição, de 1838. Nele, Nikon Ustinovich Tiazhelenko “passava a maior parte da sua vida deitado na cama, e se alguma vez se sentava era apenas à mesa de jantar”. Curiosamente, também ele é visitado em casa, mas, ao contrário do que viria a suceder em Oblomov, o narrador é visita do protagonista, e não uma entidade exterior à diegese (intermitente na sua omnisciência). Mais de dez anos depois, e já depois do assinalável sucesso do seu primeiro romance, Gontcharov publicou O Sonho de Oblomov, que viria a constituir a matéria do capítulo 9 da Primeira Parte de Oblomov, capítulo, esse, que é, de resto, o único que apresenta título, retido dessa versão original — Onde estamos nós. Para que abençoado recanto da terra nos transferiu o sonho de Oblomov? Que terra maravilhosa! (p. 129) A flutuação no estatuto do narrador, com infidelidades que fazem desconfiar da sua fiabilidade, e com limitações auto-impostas que o tornam uma entidade mais complexa do que pareceria, é um dos motivos da força do grande romance. Como o é a capacidade invulgar de criar diálogos capazes de transmitir a alma universal, mais ainda do que a alma russa. Houve mesmo quem especulasse que, caso a pena do autor se encaminhasse nesse sentido, Gontcharov teria sido um notável dramaturgo.
O processo de escrita do grande romance foi dilatado no tempo, e não isento de percalços e momentos de desistência. Possivelmente, quem melhor relatou o processo foi o narrador na primeira pessoa Ivan Gontcharov, em resposta a um bibliotecário que lhe pedia manuscritos das suas obras: “Oblomov foi começado em 1846, depois de eu ter entregado o meu primeiro romance, A História de Sempre(...). Quando terminei a primeira parte, pu-lo de lado e não lhe toquei mais até 1857. Durante os anos de intervalo, naveguei à volta do mundo, levando comigo a primeira parte do Oblomov, mas sem trabalhar nele. Em vez disso, andava a pensar e a planear outro romance,O Precipício, inicialmente concebido em 1849 no Volga, onde passei o Verão.
Foi já em 1857, quando viajei até às termas de Marienbad, que terminei a segunda, terceira e quarta partes do Oblomov de uma longa assentada. Ali permaneci durante cerca de dois meses — para lá do tempo que me estava destinado — e só escrevi os capítulos finais do romance no Inverno seguinte, em Petersburgo”.
A hesitação, a falta de rigor no cumprimento de prazos fixados ou idealizados fazem de Gontcharov um candidato mais do que natural ao papel de autobiografado em Oblomov. No entanto, parece mais plausível que o autor tivesse jogado com o conceito sem que, realmente, ele chegasse a integrar a fundo a sua psique e, mais importantemente, a oficina do escritor. Apesar dos protestos de “preguiça”, como o próprio a exprime, de abatimento e mesmo crise, em diversas cartas que escreveu, e até em registos de cariz autobiográfico, a obra do autor parece demonstrar o contrário. Se é certo que apenas nos deixou três romances (e um livro de viagens), a verdade é que esteve ligado a uma profissão de certo modo absorvente e com características algo contrárias à liberdade necessária à criatividade. O juízo de Korolenko parece conseguir resumir capazmente o caso: “Gontcharov recusou mentalmente, é claro, o ‘oblomovismo’, mas, no fundo, adorava-o com um amor arraigado, que estava para lá do seu controlo.”
Oblomov encerra, na sua constituição, um paradoxo interessante. Apesar de estar centrado numa personagem indolente e resistente a qualquer tomada de decisão — fosse ela a de mudar de casa, ler uma carta, ou cumprir uma visita de cortesia —, a sua feitura não acompanha esse estatismo. Nem tão-pouco a sua orgânica. O grande estudioso de Gontcharov Milton Ehre resumiu liminarmente o esquema conceptual de Oblomov: “do sonho para a reflexão e a acção abortada, daí para um declínio e de volta para o sonho”. O ritmo do romance é, portanto, um instrumento que o estrutura e lhe cria a sua mecânica própria. Mas se mergulharmos no modo como o romance realiza as suas disposições, verificamos que categorias como o tempo problematizam, quando não reforçam, o oblomovismo — “O Verão, o Outono e o Inverno passaram com indolência e tédio” (p. 493). Até ao fim, Oblomov permanecerá um ser preso às suas próprias limitações. Criado sem a mínima preocupação, e portanto sem responsabilidades que o equipassem para a vida prática, é como o Aleksandr Aduyev de A História de Sempre. Seres que Goncharov descreveria, num ensaio posterior, como tendo levado “vidas pacíficas debaixo das asas amáveis e protectoras da mãe, logo afastados de toda esta ternura para enfrentar várias despedidas chorosas, até se acharem em São Petersburgo, esta arena para toda a actividade”. Essa espécie de atavismo determinará que, no decurso do romance, os acontecimentos se dirijam no sentido de descreverem um círculo quase perfeito. O jovem mimado da infância — período da vida que vinha surgindo, em analepses estratégicas, ao longo de Oblomov — dará lugar à criança envelhecida que encontra na senhoria (curiosamente, uma espécie de figura maternal por procuração) uma nova almofada de segurança. Esta é uma figura mais estável e duradoura (sobrevive-o) do que Olga, para quem Oblomov tem uma notória falta de iniciativa e arrojo. Casado com Agáfia Matvéievna, essa ferramenta certeira da sua irrecusável necessidade de conforto, Oblomov substitui a revoada do mundo, e todas as suas incertezas, pelo interior seguro de uma casa e da sua senhoria — “Olhava para a sua vida actual como a continuação da mesma existência em Oblomovka, apenas com um diferente colorido de lugar e, em parte, de tempo” (p. 620). A mulher com quem casa é, no fim de contas, a concha primitiva a que o protagonista tem de regressar. E no seio da qual irá morrer. “Tentei mostrar em Oblomov”, disse o autor numa carta, “como e por que razão o nosso povo fica feito em papas antes de tempo: a paisagem e o clima, as vastas distâncias e a isolação, um estilo de vida soporífero — bem como aquelas situações próprias a cada pessoa”.