A serra toda cabe numa azeitoneira
Um projecto que junta artesãos e designers faz por recuperar o artesanato da serra e do barrocal algarvios. Chama-se TASA e quer mostrar que os saberes e os ofícios de antigamente podem ser renovados sem esquecer o território e, sobretudo, as pessoas.
A nossa memória de pessoas e lugares está muitas vezes ligada a objectos e a cheiros, a sabores e a sensações. No Natal tudo isso vem ao de cima com maior clareza. O bolo que a mãe aprendeu a fazer com a avó e que a torna presente, mesmo quando ela já não está à mesa, o casaco de lã que a tia fez para a sobrinha e que hoje usa a neta, a boneca que se recebeu do pai ao nascer que agora se oferece à filha.
Alguns desses objectos são artesanais, vêm de casas antigas ou resultaram de férias de Verão passadas na praia ou na serra. Na casa de Cremilde Lourenço, uma artesã de 74 anos que ainda vive no monte onde nasceu, essas memórias passarão também por uma arte antiga que ela só aprendeu quando tinha 45 anos, depois de muito bordar e costurar — a da empreita, um entrançado feito a partir de folhas de palmeira em forma de leque. No quintal cheira a alecrim e a sua sala de trabalho tem a porta aberta, com o sol sobre a máquina de costura e o banco onde se senta muitas vezes a trabalhar.
Cremilde Lourenço é uma dos 22 artesãos envolvidos no TASA — Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais, um projecto que nasceu em 2010, concebido pela dupla de designers The Home Project com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, e hoje a cargo da empresa de ecoturismo Proactivetur. A ideia, explica João Ministro, o engenheiro do Ambiente que a dirige, é recuperar estes ofícios antigos, reabilitando os artefactos que produziam e criando outros com base nas mesmas técnicas, associando-lhe designers contemporâneos e criando para eles um mercado.
“O que queremos é garantir que estes ofícios que já foram muito importantes para a região não morrem, transformando a actividade destas pessoas, e com ela o seu modo de vida, em algo que é comercialmente viável, sustentável”, continua Ministro, falando na extensa rede de artesãos do TASA, que vai de Messines, perto de Silves, a Castro Marim, já quase em Espanha.
Este engenheiro que já trabalhou para o Instituto de Conservação da Natureza e que está habituado a projectos de desenvolvimento local fundou a Proactivetur, que hoje coordena o TASA, também em 2010 e começou a trabalhar em ecoturismo, promovendo programas de caminhada pelo interior do Algarve, um território a que se refere como um “mundo abandonado com um património riquíssimo por descobrir”, “autêntico” e “preservado”.
Recuperar ofícios antigos faz do TASA aquilo a que chama um “braço do design social”, mas sem ilusões. A olaria tem vindo a conseguir adaptar-se, diz, mas outras artes ficaram para trás e dificilmente serão recuperáveis, por falta de procura ou por não haver quem queira aprender. Entre elas a dos caldeireiros (faziam alambiques e reservatórios de metal para o azeite), latoeiros (vários tipos de peças em latão), ferreiros (sobretudo ferramentas e ferraduras) e albardeiros (albardas para os animais que trabalhavam no campo). “Mesmo a arte do barro esteve muito tremida. Loulé tinha 15 olarias, hoje tem uma. Na aldeia de Martinlongo havia 12, hoje não há nenhuma.”
Combinar um projecto de revitalização da rede de produção artesanal com o turismo é o que faz hoje em dia. Esta sinergia não quer dizer, garante, que veja o turismo como uma bóia de salvação para estes ofícios, pelo contrário. “É importante que as pessoas se interessem, mas isso não significa que o TASA deva produzir objectos puramente decorativos, para cativar. Tudo o que se faz deve ter uma função. Era assim no original e é assim que deve continuar. Eu não quero ter coisas feitas para o turista — quero que o turista venha ver a paisagem e entre na cultura, quero que perceba para que é que serviam os cestos que vai comprar e, se possível, que experimente para ver como é difícil fazer empreita ou trabalhar o esparto [outra planta que, entrançada, é usada pelos cesteiros].”
Joana Cabrita Martins, 31 anos, esteve ligada ao projecto entre Junho de 2013 e Maio de 2015, participando agora no concurso que o TASA lançou para encontrar um designer que conceba cinco produtos para renovar o catálogo. Quinze das quase 30 peças que desenhou para o projecto, muitas em parceria com Ana Rita Aguiar, Joana Regojo ou Salomé Afonso, estão à venda, outras foram abandonadas porque a sua produção era demasiado dispendiosa, porque não encontraram mercado ou simplesmente porque o resultado estético não foi o que a autora previra.
“Às vezes o desenho não se consegue adaptar às técnicas do artesão, outras é o material que não se adequa ao que se projectou e a peça não resulta”, reconhece. “É muito importante ouvir o artesão.”
O material é que manda
Para se conhecer António Luz, é preciso parar em S. Romão, pequena localidade de S. Brás de Alportel, numa oficina à beira da estrada. O cenário parece caótico — ferramentas misturadas com troncos e pedaços de aglomerado de cortiça, fios eléctricos por toda a parte e muitos caixotes com restos de madeira, aparas e peças de barro à espera da sua vez — mas este artesão ligado ao TASA desde o início parece saber exactamente onde está o que procura.
Quarenta e seis dos seus 63 anos foram passados a trabalhar em cortiça e madeira, depois de ter começado como aprendiz de carpinteiro quando tinha 11 anos. “O meu mestre, António da Avó, andava de porta em porta a fazer móveis por medida, na casa dos ricos”, lembra. Aprendeu a trabalhar a madeira no Sítio das Mealhas, não muito longe do lugar onde hoje vive, mas a manejar a cortiça ninguém o ensinou. “Fiz tudo sozinho porque me entusiasmei. E no princípio não foi fácil.” Quem olha para a cortiça, explica, pensa que é um material fácil de trabalhar, macio, maleável, mas é precisamente o contrário: “A cortiça parte-se muito, não é regular como a madeira, agarra, prende e põe as ferramentas em brasa. Para a cortar, as serras têm de ser muito potentes. E quando o aglomerado [cortiça prensada] vem mal preparado é um cabo dos trabalhos. Às vezes para fazer um candeeiro parto dois ou três”, diz, referindo-se a duas das peças do catálogo do TASA que passam pelas suas mãos — o candeeiro da dupla The Home Project (Álbio Nascimento e Kathi Stertzig), só em cortiça, e o Pião, que junta também madeira e que foi desenhado por Joana Martins e Ana Rita Aguiar.
Para António Luz, o domínio dos materiais vem primeiro do que tudo, ou não fosse ele um artesão. É por desconhecerem a forma como o material se comporta que às vezes os designers chegam com “ideias que não vão a lado nenhum”. “Muito franco e muito torto” — assim o descreve a sua mulher — António Luz chega a ter longas discussões com os autores do projectos.
O processo que conduz a uma peça do TASA, reconhece, já lhe ensinou muita coisa, mas só quando designer e artesão estão dispostos a aprender e a perder muitas horas. António Luz é hoje artesão a tempo inteiro e é por isso que diz que, se tem favas na horta, é porque elas não precisam de muita atenção. A oficina toma-lhe dez a 12 horas por dia, umas vezes a fazer peças do projecto que Sara Fernandes coordena, outras gastas em candeeiros, animais e galheteiros de sua autoria que vende pelas feiras da região. Ao seu lado está sempre o cão, Faísca, que partilha com ele o gosto pela caça, mas que às vezes destrói uns candeeiros.
Proteger a actividade de homens como António Luz passa por proteger o seu território. O barrocal é a faixa central do Algarve, entre o litoral e a serra, uma zona agrícola por excelência, que hoje está muito desertificada. Na serra, onde domina a cortiça e a floresta, o cenário repete-se com muitas aldeias abandonadas ou que o serão dentro de menos de dez anos. Boiça ou Cabaça, perto de Barranco do Velho, que já teve mais de 100 moradores e uma destilaria concorrida, são exemplos deste êxodo para um litoral cada vez mais povoado e descaracterizado.
“O TASA tem de ser visto como um projecto global porque só se protege o que se valoriza. Para preservar este artesanato, é preciso preservar o modo de vida das pessoas que o fazem, é preciso proteger, por exemplo, o sobreiro. E isso não podemos fazer com vedações.” João Ministro sabe que só transmitindo este saber aos mais jovens estas artes e técnicas poderão sobreviver. Para isso está prevista a criação de uma escola em Loulé, em colaboração com a câmara municipal, e de um programa de formação mais personalizado, capaz de recuperar a velha relação mestre-aprendiz. “A melhor maneira de aprender é ter o aluno na casa do mestre ou ali muito perto, na mesma aldeia, no mesmo monte, com a formação a ser feita de um para um.” É o querem fazer, por exemplo, com António Gomes, o artesão do monte das Furnazinhas que produz os cestos que o projecto exporta para o Japão.
Promover o crescimento do TASA, defende Ministro, passa precisamente por explorar as exportações. Mas, para isso, é preciso montar uma rede de lojas que o representem no exterior e, antes, criar condições para aumentar a produção, que por vezes não chega para responder às encomendas nacionais.
A questão da “encomenda”, lembra Álbio Nascimento, um dos criadores do projecto, é desde o início um dos motores do TASA. Porque fazer destas artes ancestrais um modo de vida sustentável passa por criar procura. Hoje muito crítico em relação ao facto de o projecto ter afastado da sua esfera os investigadores que estavam ligados a universidades, museus e outras instituições locais, o designer de 37 anos, um algarvio nascido em Faro com um avô agricultor e outro pescador, defende que é preciso alargar a rede de artesãos, de os envolver mais no processo de criação de cada objecto, e de formar novos, mas sem recorrer a um “esquema formal tipo escola, que esteja sempre a tirar as pessoas do lugar onde se sentem bem”.
“No início, depois de feito um levantamento dos artesãos, dos ofícios e, sobretudo, das necessidades, andámos literalmente à caça de encomendas — os produtos não eram um fim em si mesmo, mas o motor do projecto, a maneira de atingir um objectivo maior que era o de devolver o artesanato ao mercado local”, lembra Nascimento.
João Ministro admite que há hoje a ambição de ultrapassar as fronteiras locais — o TASA tem uma loja online, exporta cestos também para a Alemanha, peças em cortiça para Inglaterra, e a sua equipa está a estudar possíveis representantes em França e na Holanda — mas garante que o envolvimento dos artesãos é uma constante e que os clientes regionais continuam a ser muito importantes, dando-lhes a possibilidade de “personalizar” alguns dos produtos do catálogo. Entre eles, estão, por exemplo, hotéis como o Ozadi, em Tavira, o Vila Monte, em Moncarapacho, e o Vila Joya, um dos destinos de quem faz férias de luxo em Albufeira.
Da via algarviana para o artesanato
Alguns dos artesãos com que o TASA trabalha nunca fizeram outra coisa, mas outros chegaram ao ofício depois de terem trabalhado na agricultura ou na construção. É o caso de Fernando Martins, homem de poucas palavras, que começou a fazer cabides e colheres para o projecto — assim como muitas outras peças decorativas e mobiliário que vende em feiras — quando a crise se instalou e deixou de ter trabalho a fazer portas e cozinhas para os empreendimentos do litoral.
Começou a trabalhar a madeira quando era adolescente, em Benafim, ganhando 50 escudos por dia como aprendiz, e nunca mais se quis afastar dela. Hoje, com 53 anos, o seu mundo profissional é a pequena oficina que tem instalada ao lado da sua casa, num quintal onde neste início de Dezembro cheira a laranjas. E é na serra à volta de Alte, onde vive, que caminha muito à procura de galhos de oliveira caídos — é com eles que faz os cabides, depois de muito bem polidos — e de medronheiro. “As colheres têm de ser de medronheiro ou de urze porque não agarra a comida e deixa um gosto bom. Se fosse pinho, não dava paladar nenhum”, explica.
Em Alte “moram” também outras três artesãs do projecto — Ana, Silvina e Arliete são as mulheres da oficina Da Torre, que funciona numa antiga escola primária e onde constroem brinquedos em madeira, para além das tampas do saleiro e pimenteiro do TASA e dos delicados cabides em forma de animais que a The Home Project desenhou.
“A nossa aposta é sempre na qualidade da execução e isso traz-nos, claro, custos”, diz João Ministro, que espera ter em 2016 um “projecto sustentável”. Por agora, manter o TASA sem se pagar a si próprio — a empresa suporta o investimento, à excepção do site institucional, cuja criação foi paga pela CCDR Algarve — implica desviar receitas das actividades de ecoturismo para aplicar no artesanato. Algo que para este engenheiro do Ambiente faz todo o sentido, já que as diversas actividades da empresa partilham objectivos e público-alvo.
“As pessoas que vêm fazer dezenas de quilómetros pela via algarviana [rota pedestre que liga Alcoutim ao cabo de S. Vicente, com uma extensão de 300km, a maioria dos quais pela serra] são as pessoas que se interessam por culturas tradicionais”, explica. Caminhar por aquele território é entrar no TASA, defende Ministro, apontando para o esparto e para a palmeira anã de onde nascem cestos e alcofas de empreita. “Gosto de pensar que uma peça nossa tem lá dentro a pessoa que a desenhou e a que a fez, mas tem também esta cultura, esta maneira de viver com a terra, um certo ritmo de fazer as coisas, que às vezes nos desespera, mas que é muito natural. É como se uma azeitoneira ou um apito de cana tivesse a serra lá dentro.”
Uma serra de sobreiros, alfarrobeiras, aroeiras e figueiras, mas também de tomilho, alecrim e rosmaninho, que na Primavera se enche de narcisos e orquídeas. Uma serra que também fala de Mediterrâneo na luz que se reflecte nas casas que se caiam todos os anos e nas cores dos ladrilhos de argila que a empresa de Júlio Faustino produz em Tavira.
Desde que nasceu, o TASA já teve várias vidas (está agora e desde Março de 2012 na terceira fase, com a Proactivetur) e produziu mais de 50 peças, embora algumas não tenham chegado a passar da fase de protótipo.
Álbio Nascimento e Kathi Stertzig conceberam o TASA depois de uma temporada na Catalunha, onde se cruzaram com uma dinâmica semelhante, explica à Revista 2 este designer que já viveu em Antuérpia e Berlim, hoje a morar em Lisboa, mas que parece continuar a sentir o Algarve como um território seu. Foi aí que perceberam que, para funcionar, precisavam de uma base social forte, de um levantamento exaustivo dos problemas e das necessidades. “Era preciso envolver as pessoas e as instituições, mas com naturalidade, sem pretensiosismos e sem pressão para a inovação. Era uma coisa feita de acordo com as necessidades locais, para pôr os artesãos a trabalhar uns com os outros. Queríamos mostrar-lhes que o que faziam podia encontrar um comprador, não queríamos sentar um designer ao pé de um cesteiro para fazer um cesto ‘diferente’.”
Para explicar os objectivos aos potenciais clientes e mesmo aos artesãos, Álbio Nascimento costumava dizer: “Vamos fazer de conta que agora fecharam as fronteiras do Algarve e nós temos de viver com o que aqui temos — cortiça, alfarroba, barro… Vamos viver com o que vem de dentro.”
Quando se afastaram do projecto, em 2011, os dois designers que estudaram juntos no Politécnico de Milão, deixaram 26 produtos feitos (entre os três e os cem euros), um livro e um relatório exaustivo que respondia à pergunta “Como continuar?” “Quisemos mostrar que este, como qualquer projecto com a mesma ambição noutro lugar, tem de estar atento à realidade do território. Não se pode pensar só em renovar os artesãos, em trabalhar os mesmos materiais e técnicas, em dar uma cara contemporânea aos produtos. Não é chapa 5, não há fórmulas. É preciso, primeiro, conversar com quem faz, ver o que lhes falta.”
Em muitas das peças que conceberam para o TASA, diz, o design praticamente desaparecia, funcionava apenas como “facilitador” do processo de produção. “O melhor elogio que me podiam fazer ali era confundir uma peça minha com uma velha, com uma coisa que pudesse estar num museu etnográfico depois de ter servido muitos anos na cozinha de alguém.”
Continua a ser assim no trabalho que estão a desenvolver no litoral alentejano, com quatro comunidades piscatórias do concelho de Odemira. “Agora trabalhamos também como consultores, algo que nunca pensámos fazer quando o TASA começou — o que queríamos era falar com aquelas pessoas, aprender com elas, provar aguardente nova”, diz, ilustrando a proximidade que sempre promoveram.
A mulher que inventa árvores
A proximidade entre designers e artesãos, garante Ministro, continua a ser um dos ingredientes do TASA. Assim como a combinação de saberes numa peça só e que permite juntar Fernando Martins ao oleiro Francisco Eugénio para fazer colheres de servir, e Cremilde Lourenço a Pedro Piedade, dono da única olaria de Loulé, para produzir potes de barro.
Piedade, 43 anos, é o mais novo dos artesão do projecto (a média de idades ronda os 60 e Cremilde Lourenço é a mais velha). A olaria é um negócio de família, a que começou a dedicar-se quando deixou de estudar, aos 16 anos, e muito por causa da morte do pai e do irmão, que foram seus mestres. “Eu não queria fazer isto, mas também não queria que acabasse. Tive de me decidir.” Hoje não se arrepende, mas garante que não obrigará a única filha, Inês, a seguir-lhe as pisadas.
As peças que produz para o TASA — potes, candeeiros, reservatórios de vinho e os recipientes incorporados nas tábuas de cozinha — são feitas à mão, mas tem na olaria uma máquina para as peças abertas (pratos, travessas…) que produz em série, e o forno chega a cozer mais de mil peças por mês, que depois são vendidas na loja da família em Quarteira. Tomou o gosto ao barro quando começou a trabalhar na roda. “No tempo do meu pai, havia uma olaria em cada canto da cidade”, diz. Pedro Piedade não tem paciência para ensinar, mas gosta de experimentar e é por isso que já passaram pela sua olaria designers da Eslováquia e até do Cazaquistão.
Sentado à roda, com a cana, a faca, a espátula e o fio de pesca à mão, este oleiro está sempre pronto para desafios. Cremilde Lourenço tem idade para ser mãe dele, mas partilha o mesmo espírito de inovação. Falar com esta mulher de energia inesgotável implica abrir o dicionário (isto para quem nasceu e cresceu em Lisboa, claro). Ela explica com calma o que é uma capacha (tapete) ou uma cedoura (base para tachos), mostra como se faz a empreita, arte que até já chegou a ensinar a um casal de japoneses que João Ministro levou a sua casa num workshop do TASA, e fala do seu dia-a-dia com simplicidade. A rotina é marcada pela vida de casa e do campo — é casada há 54 anos, tem três filhos, quatro netos e um bisneto —, com alvorada às sete e o trabalho artesanal interrompido sempre que é preciso apanhar azeitona ou alfarroba.
Muito perfeita na execução — “tenho vaidade de fazer bem”, diz —, faz para o TASA tampas de potes e delicadas malas de caminhada com folha de palma entrançada. Já ganhou vários prémios do Instituto de Formação Profissional — foi num dos seus cursos que aprendeu a arte — e está sempre a experimentar. “Gosto que venham cá [os designers] porque explicam muito bem, com muito cuidado. E mesmo para mim, que tenho a quarta classe feita há 64 anos. Têm de vir pessoas de fora porque numa terra em que os outros sabem o mesmo ou até menos do que a gente não se evolui, não se aprende.”
Começar na empreita não foi fácil — “quando nós não sabemos, as nossas mãos também não sabem e mesmo que o cérebro pense como se faz, elas não se ajustam” —, levou tempo. “Só se pode começar velha, como eu comecei. Também experimentei o esparto, mas até chorava. Era muito duro.”
Tudo o que Cremilde Lourenço leva às feiras, assegura João Ministro, desaparece em segundos, de tão cuidadas são as peças. Esta artesã, que passa quase todos os tempos livres na sua salinha de costura, ainda tem tempo para “inventar árvores” para a festa da espiga, como aquela amendoeira que hoje tem na sala, com 500 flores em papel de seda. “Os filhos e os netos querem outras coisas, mas eu quero isto. Quando estou a trabalhar, não sinto passar o tempo, não tenho vagar.”