Volto ao Sul
Macri é provavelmente a melhor solução nos tempos que correm, como o peronismo de esquerda o foi na época que agora se encerra.
O filme chama-se Sur, foi realizado por Fernando Solanas e a sua banda sonora adquiriu vida própria pela pungente beleza que a caracteriza. Um bandoneón, uma voz, a de Astor Piazzolla, e palavras inesquecíveis: “Vuelvo al Sur como se vuelve siempre al amor”. Nesse regresso encerra-se bastante mais do que aquilo que se explicita no guião do filme. Esse regresso, para quem vem de fora, representa a descoberta de um país estranho e fascinante: a Argentina. Em que outro lugar do mundo se podem discutir os conceitos rudimentares da psicanálise com um taxista num castelhano entoado com timbre napolitano, assistir a grandes manifestações populistas coroadas por discursos de uma elegância retórica extraordinária, caminhar por boulevards parisienses sem o Sena e com toda a vozearia intraduzível da América Latina? Há quem diga que para conhecermos um país devemos começar por ler os seus principais escritores. Desconfiei sempre de tal afirmação, talvez por não querer limitar uma obra literária à sua origem nacional. No caso argentino, porém, as coisas parecem-me diferentes. Parece-me quase impossível que Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares pudessem ter nascido noutro sítio que não Buenos Aires. Nenhum deles é outra coisa senão um escritor universal. Borges era tão anglo-saxónico como castelhano, Cortázar viveu grande parte da sua vida em Paris, a singularidade de Bioy Casares é absoluta e, contudo, os três reflectem o ar que se respira em Buenos Aires. O mesmo se poderá aplicar, ao que me dizem, à pintura e ao próprio cinema.
A Argentina é também o país do futebol, do tango e da banda desenhada. Não é necessário uma grande imaginação para perceber o que aproxima Maradona de Carlos Gardel e de Mafalda. Todos, à sua maneira, são geniais. Muito provavelmente, Quino poderia ter inventado Maradona e este não deixaria de integrar, se tivesse sido seu contemporâneo, o reportório de Gardel, esse argentino referencial cuja paternidade é reclamada simultaneamente pela França e pelo Uruguai.
Há quinze dias os argentinos elegeram um novo Presidente da República. Pela primeira vez, em mais de oitenta anos, escolheram um candidato não oriundo do inevitável peronismo e da sua sombra menor, o designado radicalismo. O eleito foi Mauricio Macri, imediatamente identificado com as correntes liberais e anunciado como representante do que a Europa convencionou designar como a direita. Não sendo inteiramente errada essa apreciação, ela ignora aspectos igualmente relevantes para a compreensão da figura em causa: Macri é filho de um italiano que fez fortuna na América do Sul, frequentou com relativo insucesso prestigiadas Universidades norte-americanas mas acabou por licenciar-se em engenharia no seu país natal, conseguiu alcandorar-se ao estrelato através do futebol como Presidente do Boca Juniors, exerceu com competência as funções de Presidente da Câmara de Buenos Aires. Admitamos que não é o percurso típico de um político europeu. É provável que nunca tenha lido o hermético Bioy Casares, mas terá certamente dançado muitas vezes ao som de Piazzolla e rejubilado no estádio com os sucessos do seu clube. Macri é, à sua maneira, um típico político sul-americano.
O peronismo é um fenómeno político dificilmente compreensível fora da Argentina. Não é porém possível compreender a Argentina sem perceber a essência do peronismo. Juan Perón associava no seu discurso e na sua acção elementos contraditórios, próprios de um populismo de esquerda com indisfarçáveis pulsões pró-fascistas. A sua esposa Evita foi, aliás, a expressão máxima desse paradoxo. Heroína dos descamisados e ao mesmo tempo expressão de uma certa simbologia fascistóide em versão latino-americana. A sua biografia, como se de uma personagem literária do seu país se tratasse, prolonga-se nas rocambolescas aventuras vividas pelo seu cadáver. Este andou escondido por ignotos lugares de Buenos Aires, foi transportado até um cemitério italiano e acabou num mítico lugar em La Recoleta, o bairro da alta burguesia que sempre a desprezou. Evita Perón ainda hoje é endeusada pelas mulheres dos sectores mais populares da Argentina. Não é raro encontrar o seu retrato nas modestas habitações dos mais remotos lugarejos do país.
O que pensariam Borges e Cortázar da vitória de Mauricio Macri? Coisas diferentes, seguramente. Mas ambos olhariam para este acontecimento de forma bem diversa da nossa estereotipada visão eurocêntrica. Sim, é verdade que a ascensão à presidência da República de uma personalidade política com um pendor mais liberal − e como tal mais propensa a valorizar as relações com o espaço político europeu e norte-americano − se pode revelar de grande utilidade no contexto presente. Nesse sentido, puramente pragmático, a sua vitória não pode deixar de ser saudada. Tal não significa, no entanto, que se deva desvalorizar o que os anos do kirchnerismo significaram na vida política argentina: restituíram dignidade aos mais fracos, essa palavra que também consta de uma das mais belas músicas de Piazzolla; responsabilizaram e condenaram os militares criminosos que em nome de um suposto “Ocidente cristão” promoveram a mais sinistra ditadura militar sul-americana da década de 70; superaram um dos períodos negros da história do país, marcado por uma grande conflitualidade social e política.
Perante situações desta natureza não é senão possível ter sentimentos contraditórios. A política não tem necessariamente de ser mais simples do que a vida. Pelo contrário, talvez constitua uma das dimensões mais complexas em que esta se manifesta. Os espíritos simples têm sempre respostas definitivas. Tudo para eles é claro já que não conseguem conceber o mundo senão numa perspectiva polarizada entre o bem e o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto. Esses espíritos jamais compreenderão a Argentina.
Macri é provavelmente a melhor solução nos tempos que correm, como o peronismo de esquerda o foi na época que agora se encerra. A Argentina, nas suas geniais contradições, será provavelmente uma das melhores metáforas do momento histórico que atravessamos. Deus, em cuja existência não acredito, nos proteja dos que só têm certezas, proclamações definitivas, verdades inquestionáveis. Esses não se limitam a não compreender a Argentina: jamais compreenderão Portugal.
Por razões óbvias, que têm que ver com afinidades electivas, sou mais sensível aos exageros e aos erros da esquerda democrática do que aos de qualquer outra família política. Custa-me assistir a certos exercícios em que é difícil estabelecer a fronteira entre o narcisismo ideológico e a inanidade intelectual. Gente habitualmente inteligente parece ter desistido da sua inteligência. Talvez fosse bom que a nossa esquerda democrática lesse Adolfo Bioy Casares. Estou certo de que os protegeria do risco da estupidez.
2. A última polémica da nossa vida política prende-se com a eleição parlamentar dos novos Conselheiros de Estado. Insuspeito como sou de qualquer simpatia para com a solução política hoje prevalecente, considero contudo que nas actuais circunstâncias da vida nacional se justifica plenamente a presença no Conselho de Estado de personalidades indicadas quer pelo Bloco de Esquerda, quer pelo Partido Comunista. Ocorre aliás que ambos podem indicar nomes de inegável prestígio e qualidade. Não faria aliás qualquer sentido que o Partido Socialista aceitasse ficar inteiramente dependente do apoio desses dois partidos para assegurar a governação do − a meu ver erradamente − e lhes não reconhecesse o direito de estarem representados no Conselho de Estado.
3. Não posso deixar de saudar a coragem do líder da UGT, Carlos Silva. O futuro se encarregará de demonstrar como ele tem razão nos seus receios e na sua determinação. Basta ouvir Arménio Carlos para perceber o papel histórico que de novo está cometido à UGT. Ainda bem que esta organização não tem na sua liderança um simples títere a soldo de uma qualquer conjuntural liderança partidária, mas antes um homem que já demonstrou ter carácter e fortíssimas convicções.
4. Ao que relata a imprensa, o nosso novel Ministro das Finanças terá tido uma conversa curiosa com os seus congéneres europeus na reunião do ECOFIN da passada segunda-feira. Ter-lhes-á apresentado os seus pontos de vista sobre o mercado de trabalho e a reforma da segurança social. Confesso que é a primeira vez em que senti vontade de me metamorfosear numa mosca para poder ouvir as considerações proferidas por Mário Centeno sobre tão relevantes assuntos. Ao que consta, o Ministro alemão Schäuble não ficou nada entristecido. Tal como na América Latina, as coisas na Europa não são o que parecem ser. Ainda bem. Termino glosando o grande Astor Piazzolla: vuelvo à la contradicción como se vuelve siempre al amor. Bem sabemos que o amor nem sempre é feliz.