Depois dos alertas da OMS, como comprar uma lata de salsichas?
A palavra “cancro” fez disparar as campainhas de alarme. O aviso veio da Organização Mundial de Saúde: a carne processada e a vermelha podem causar cancro. Comprámos vários produtos de charcutaria e tentámos perceber, pela leitura dos rótulos, onde podem estar os problemas.
O alerta chegou no final de Outubro e assumiu a forma de manchetes alarmantes na comunicação social: as carnes processadas e a carne vermelha (incluindo a de porco) aumentam o risco de cancro, anunciou a Organização Mundial de Saúde (OMS). As primeiras, entre as quais se encontram o fiambre, as salsichas ou o bacon, foram mesmo equiparadas pela OMS ao nível de perigosidade do tabaco. Muita gente receou ver surgir uma campanha avisando que “comer carne mata”. Mas será realmente assim?
Após as primeiras notícias, peritos em questões de alimentação e saúde tentaram acalmar a opinião pública, afirmando que se se comer de tudo com moderação os riscos são reduzidos. Mas os consumidores ficaram confusos. O que fazer num supermercado perante prateleiras cheias de latas de salsichas, ou frigoríficos onde se alinham, tentadores, presuntos, bacon, linguiças e chouriços?
Colocámo-nos no lugar de um consumidor que tenta fazer as escolhas mais saudáveis. Comprámos diferentes produtos de charcutaria – salsichas de frango, de peru, de cocktail, peito de peru fumado, toucinho fumado, fiambre, linguiça, chouriço, bacon – comparámos os rótulos e deparámo-nos com várias dúvidas. Qual seria a melhor opção? Para as esclarecer pedimos ajuda a dois especialistas, Duarte Torres, professor de Toxicologia Alimentar, e Nuno Lima Dias, técnico da Deco-Proteste, especialista em segurança alimentar.
Nitritos
A relação entre a carne processada e o cancro passa, essencialmente, por uma substância: os nitritos. O que são, que perigo representam e como podemos (se é que podemos) evitá-los? “Ainda não se conhece exactamente como é que a carne processada transforma as células normais em células cancerosas”, afirma Duarte Torres. “Os nitritos são, de facto, os ‘principais suspeitos’. Está demonstrado que, durante a digestão, a conversão dos nitritos em compostos N-nitrosos acontece.” A mesma conversão ocorre quando, durante a confecção, a carne ultrapassa 130º, “temperaturas que podem ser atingidas nas camadas superficiais da carne em processos como assar, grelhar ou fritar”.
“Os nitritos têm uma acção conservante mas também desempenham um papel na cor das carnes”, explica, por seu lado, Nuno Dias. Têm uma função importante pelo seu “efeito bacteriostático sobre determinados microrganismos, como por exemplo o que é responsável pelo botulismo”. Ou seja, têm um papel positivo. Por outro lado, “não deixa de ser verdade que, em quantidades elevadas, os nitritos podem ser nocivos: em crianças podem impedir a normal oxigenação do sangue (cianose) e no estômago combinam-se com compostos orgânicos podendo formar nitrosaminas (potencialmente cancerígenas).”
Devemos então evitar todos os produtos que tenham nitritos? Estes são adicionados à carne em forma de sais, esclarece Duarte Torres, dando como exemplo o nitrito de potássio, identificado como E249, e o nitrito de sódio ou E250. E “a adição de sais durante o processamento das carnes é permitida desde que não ultrapasse os 150mg por quilo”. O problema é que as várias marcas comerciais usam quantidades diferentes e a informação sobre essa dosagem não é dada nos rótulos.
A Deco fez um estudo a presuntos e concluiu que todos os produtos analisados (excepto um) tinham uma quantidade de nitritos inferior ao limite estabelecido por lei. Nuno Dias considera, por isso, que os produtores estão mais conscientes deste problema e nos últimos anos têm feito um esforço para reduzir a percentagem de nitritos que utilizam. No entanto, como essa informação não é dada no rótulo, não há nada que permita ao consumidor saber a quantidade de nitritos no produto que comprou.
Outros aditivos
Todos os ingredientes identificados com a letra E num rótulo são aditivos – os nitritos são apenas uns entre mais de 300 aditivos autorizados. O que confunde é o facto de estes poderem ser identificados apenas pelo nome em vez do código. “Todos os aditivos alimentares permitidos são considerados seguros à luz do conhecimento actual, se usados abaixo dos níveis máximos permitidos”, sublinha Duarte Torres. Mas “se houver dados que apontem para um consumo na população acima da dose segura, a quantidade máxima permitida deve ser reduzida”.
Nuno Dias reforça a ideia de que “muitos são inofensivos e trazem vantagens ao consumidor”. No entanto, alerta, “outros suscitam dúvidas, podendo mesmo ser enganosos”. Para ajudar a distinguir, a Deco tem no seu site um simulador que indica, através de um sistema de cores, quais os que não levantam problemas e quais os que se devem evitar.
Entre os "E" há, por exemplo, os estabilizadores, que são fosfatos e devem ser consumidos com moderação. Usados nas carnes processadas, a sua função é aumentar a capacidade de a carne reter água no seu interior e dar volume e estrutura ao preparado. Duarte Torres salienta, contudo, que “a segurança dos fosfatos está a ser reavaliada pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos”.
Já os antioxidantes como o eritorbato ou citrato ou o ascorbato de sódio (alguns dos que constavam nos nossos rótulos), prossegue o professor de Toxicologia Alimentar, “são consensualmente considerados seguros” e “o seu uso pode inclusive reduzir a formação de compostos N-nitrosos durante a confecção da carne processada ou durante o processo digestivo”.
Os gelificantes têm também a função de conferir estrutura ao produto e aumentar a capacidade de retenção de água e nos intestinos funcionam como fibra alimentar. No entanto, um dos que constava nos nossos rótulos – a carragenina – composto extraído de várias espécies de algas vermelhas, tem levantado algumas questões em termos de segurança. Entre os intensificadores de sabor, destaca-se o glutamato de sódio, muito usado na cozinha asiática e que “pode causar reacções adversas e está desaconselhado a bebés e crianças”.
Os corantes são, segundo Nuno Dias, o aditivo que é completamente desnecessário. “Não se justifica a sua utilização, dado que existem apenas por uma questão do aspecto do produto”.
Uma nota importante: os produtos biológicos também usam aditivos, por falta de alternativas eficazes para a conservação dos alimentos. Existe uma lista dos que são permitidos para a produção biológica.
Fumo
A utilização do fumo como forma de conservação da carne é muito antiga. Actualmente, para além das vantagens a nível de conservação, é apreciada pelo sabor que confere. A questão da perigosidade deste método foi também levantada. Pelo menos um dos produtos que comprámos referia no rótulo “aroma de fumo”. Até que ponto devemos evitá-lo?
“Se o processo for bem controlado, não existem motivos para evitar os alimentos que o contenham”, refere Nuno Dias. “Continuamos a fazer churrascos sem que forçosamente, apareçam substâncias cancerígenas nos alimentos provenientes do fumo”, diz, citando um estudo feito também pela Deco. Também Duarte Torres considera que, “nas concentrações presentes nos alimentos que incorporam este aroma, não se têm levantado dúvidas quanto à segurança”.
Gordura e sal
Uma coisa é a análise de um alimento do ponto de vista toxicológico e outra é a perspectiva nutricional. Afastadas as questões sobre a perigosidade dos aditivos, centramo-nos no aspecto nutricional. Qual destes produtos é, afinal, o mais indicado do ponto de vista da saúde (não esquecendo que o consumo de carne está ligado também à obesidade e às doenças cardiovasculares)?
“Um dos aspectos a ter em conta quando se lêem rótulos é a quantidade de carne, visto ser o ingrediente nobre, alerta Nuno Dias. “Também é particularmente importante a informação nutricional pois alguns produtos à base de carne têm quantidades significativas de gordura, com frequência rica em ácidos gordos saturados que fazem aumentar o mau colesterol”.
Duarte Torres chama a atenção para os produtos que “contêm o ingrediente gordura perto do início da lista, como a linguiça picante ou o chouriço de carne extra”. Estes têm um valor energético (calorias) que se destaca dos restantes. “No outro extremo da lista temos os produtos que incorporam mais água na formulação”. Nesse caso geralmente a água aparece em segundo lugar na lista de ingredientes que, obviamente, inclui menos carne (na ordem dos 65-74%) – são exemplo disso o peito de peru fumado ou o fiambre da perna superior.
Um problema detectado por Duarte Torres – e que corresponde a uma grande preocupação em Portugal – é a quantidade de sal. “O conteúdo em sal destes produtos é muito alto, entre 2 e 2,8 gramas por cada 100 gramas. No extremo negativo está o chouriço (6 gramas de sal) e no positivo o peito de peru fumado (1,2 gramas). Este, que é o produto com menos gordura e sal, exibe, aliás, na embalagem um selo da Fundação Portuguesa de Cardiologia, que o considera “uma escolha saudável”.
No entanto, sublinha Nuno Dias, e regressando ao alerta da OMS, “nenhum alimento por si só provoca ou pode evitar o cancro”. Mas “é claro que o melhor é ter uma alimentação variada e todos sabemos que comemos mais carne do que precisamos”.
O que falta nos rótulos?
Duarte Torres critica a “heterogeneidade de termos que significam a mesma coisa” – é o caso dos aditivos, que podem ser identificados pelo nome ou pelo código. “Isso pode confundir o consumidor”, avisa. Tal como o facto de a informação nutricional/energética vir umas vezes por 100 gramas, outras por fatia e outras por porção.
Pedro Queiroz, director-geral da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA), adianta que a indústria está já a trabalhar numa “harmonização dos rótulos para que todos contenham a mesma informação, disponibilizada da mesma forma” para facilitar comparações. Esse pode ser um passo importante para simplificar a vida de todos os que, não querendo cortar os produtos de charcutaria das suas vidas, querem, apesar de tudo, perceber o que estão a comer. com Ana Rute Silva